Cartas na mesa – Tudo bem você não ser um Sherlock

Já falei a um tempo atrás de como gosto de colocar algum mistério nas minhas mesas de RPG, independente de qual seja o gênero que eu estou narrando. Gosto do ar de estranheza e detalhes que faltam numa história e os jogadores tentam ligar. O mistério pode ser algo geral, como os planos obscuros do vilão, ou um detalhe narrativo, como o comportamento eventualmente peculiar de algum personagem do mestre. A questão é: NEM SEMPRE MEUS JOGADORES CONSEGUEM SOLUCIONAR SOZINHOS.

E na verdade, está tudo bem.

Escrever uma narrativa de mistério não é fácil, ainda mais quando você não quer sentir que aquelas coisas sejam óbvias, ou que a resolução seja rápida demais, esse último que pode ser considerado um problema narrativo em outros tipos de obras além do nosso religioso RPG. Se esse é um desafio para o mestre, imagine para o jogador. Digo isso por mim mesmo, que em praticamente todas as vezes que narrei RPGs com mistério, ou inseri elementos de mistério, meus jogadores não se sentiram espertos ou grandes investigadores a qual suas fichas registravam. E novamente, está tudo bem, Jogador.

Já sabemos por A+B: RPG é um jogo colaborativo, portanto existe comunicação entre os jogadores e o mestre. Porém, para o mestre comunicar sua parte através de um mistério, ele tem que limitar suas formas de comunicação. Não no sentido de deixar de falar, mas sim de diminuir o conteúdo das informações, ou deixa-las mais simbólicas para deixar que os jogadores completem o que o mestre quer comunicar.

Se esse é um desafio para os jogadores, imagine para o mestre que técnicamente terá de fazer um esforço duplo: o de criar pistas como mestre, e de juntar as pistas como um jogador, afinal ele tem que imaginar que os jogadores cheguem mais ou menos nas conclusões que ele criou. É que nem uma empresa testar a qualidade de um produto usando os próprios empregados que criaram! Até por que... o mistério tem que ser desde o início.

Algo que devemos ter em mente é que jogar RPG representa lidar com a subjetividade individual de cada jogar. E entender isso mostra o grande abismo que um jogo de RPG para um jogo eletrônico. E isso também implica no por que é mas fácil entendermos de mistérios e investigações em outras mídias e por que os jogadores de RPG podem ter alguma dificuldade: as outras mídias já foram construídas por consumo, já o RPG apesar de ter uma história construída, tem a lacuna da participação dos jogadores. Algo que é bem abrangente, e normalmente tende a fugir da expectativa do mestre. Portanto, criar uma narrativa investigativa torna-se um desafio por que o mestre vai lidar com um nível de imprevisibilidade ainda maior do jogador.

Poderíamos considerar que aventuras prontas não apresentam esse problema, e até certo ponto isso é verdade. Até porque tecnicamente são aventuras que possuem uma narrativa fechada onde todos os elementos e pistas levam os jogadores para onde a história pretende se concluir, como se fosse de fato uma história investigativa. Porém falamos de uma infinita rede de pensamentos, dúvidas e conclusões ambíguas chamadas “jogadores”, que em algum momento podem fazer a narrativa desviar um pouco do destino.

Trago dois exemplos dessa imprevisibilidade: como mestre e como jogador.

O terror da Dimensão Y

Dimensão Y é uma das melhores aventuras prontas que já narrei de Rastro de Cthulhu. Ela faz parte de uma coleção de quatro aventuras chamada Inacreditáveis Casos Sobrenaturais, de Robins Laws, autor de Gumshoe, o sistema de Rastro de Cthulhu. Esta aventura fecha com chave de ouro uma coleção genial que mostra muito bem como é interessante a execução de investigações. Nesta aventura, os jogadores são convidados pra ver um experimento científico que acaba dando muito errado, e agora eles têm cerca de uma semana para descobrir o que provocou a falha, enquanto começam a alucinar com os efeitos colaterais do experimento.

Eu narrei duas vezes esta aventura. Uma para um grupo de seguidores da Cabana e outra para um grupo fechado de amigos. Com o grupo de seguidores, foi uma aventura one-shot que demorou cerca de 9:30h para ser concluída, e foi jogado a noite. Não recomendo esse tipo de experiência para os mestres. Já com o grupo de amigos, o qual imaginava que a proximidade e o conhecimento entre si poderiam promover uma maior agilidade, demorou quase um ano para ser concluída.

A aventura em si tem dois elementos que chamam a atenção: muitas cenas se dividiam com a parte cotidiana dos personagens, onde normalmente era onde eles encontravam o terror alucinante e eventualmente poderia ser dado alguma pista pela recompensa pelo estresse, o outro elemento era o fato de boa parte da investigação ser feita com entrevista de NPCs.

E é neste segundo elemento que identifiquei o motivo do tempo que levamos para concluir a aventura. Quando lemos a aventura, soa muito óbvia as respostas que seriam dadas, afinal os eventos e pistas produziriam perguntas para isso. Mas as pessoas não são óbvias. E quando os jogadores fazem perguntas as quais as respostas podem não sanar a dúvida de uma pista, nos encontramos numa longa cena de conversa onde as peças não se encaixam. Esse foi o motivo para ambos os grupos irem e voltarem nos NPCs por que percebiam que esqueciam de perguntar algo para eles.

O dia que eu errei A Estação

Se em algum momento, você jogador, achou que, por seu mestre gostar de mistérios ele é bom em solucionar alguns, errou feio!

Fui playtester da aventura A Estação, de Vitor Borneo, jogamos usando também o Rastros de Cthulhu. Oficialmente ela está sendo publicada na New Order Magazine como uma aventura de Chamado de Cthulhu 7E. Quando jogamos, ela foi pensada para ser uma one-shot também.

Os playtesters, macacos-velhos do RPG, com 15, 20 anos de mesa, jogadores de Chamado e Rastro de Cthulhu, seriam aptos para destrinchar uma one-shot investigativa numa noite.

Essa noite durou 3 meses...

A aventura se passava numa estação militar brasileira na Antártica, os personagens são pessoas ligadas a conhecidos da estação que com suas habilidades iriam investigar o caso de um dos residentes o qual estava passando por estresse pós-traumático. Nós nos mostramos proativos na investigação, porém tomando um rumo completamente oposto ao planejado pelo mestre, indo cada vez mais longe na investigação e demorando muito pra ligar os pontos, chegamos até a espancar um NPC achando que ele estava envolvido numa conspiração interna na estação.

Nossos personagens, todos letrados, profissionais. O meu acadêmico era um doutor, por exemplo, mas ainda assim, não importava, as vezes fazíamos uso equivocado de nossas habilidades, como se fossemos um aluno que não passou na prova de matemática mesmo que o professor tenha dado todas as fórmulas.

Ou talvez eu tenha interpretado muito bem aquele meu professor idêntico ao Olavo de Carvalho e tenha na verdade se autointitulado doutor...

Investigações de RPG fictícias x reais

Como podemos ver, nem mesmo jogadores veteranos escapam dessa situação. Existem muitos fatores que interferem nisso. Eu citei exemplos em que os personagens são investigadores circunstanciais, portanto estão usando seu arcabouço de habilidades de forma incomum, mas muitas vezes isso não casa diretamente com o jogador. Eu sou antropólogo, mas posso interpretar um coronel, só não me pergunte quantas e qual a ordem de patentes que existe no exército!

Mas apesar de tudo, essas situações são realmente críveis. Não imaginem que uma investigação seja no melhor estilo CSI, onde todo mundo entende muito bem sua função, cada técnico na sua sala e na hora da cena de planejamento todos falam frases de efeito usando termos complicados. Não é assim.  No contexto que apresentei, o melhor exemplo que podemos ter de investigadores circunstanciais está num documentário pra lá de perturbador da Netflix chamado Don’t fu** With Cats, onde um grupo de amantes de gatos investiga anonimamente um assassino de gatos da internet, mas a situação toda vai além e eles se engajam em algo ainda mais bizarro. Uma investigação equivocada, cheia de pistas falsas, e pessoas inexperientes que demoraram muito pra chamar as autoridades para lidar com o assassino.

Mas ai você pode me perguntar: por que então essas mesas funcionam tão bem nos streams, como o do Cellbit e o Nerdcast?

Simples, jogador (a/e).

É editado e combinado. Uma coisa é você ser participante do mistério. Outra é você ser o espectador enquanto outras pessoas tem pleno controle e consciência de como usar suas habilidades. O espectador pode até conjecturar com teorias ou conclusões sobre a investigação, mas o resultado final só vai ser dado ao público, enquanto que os jogadores/atores interpretam a fim de provocar aquela tensão esperada na investigação. Isso não é uma crítica, mas sim uma forma de transformar o RPG num entretenimento. Vejam esses streams como realmente eles se propõe, uma série!

Conclusão: "Eu acuso o Coronel Mostarda, com a chave inglesa, na cozinha!"

Criar e narrar aventuras investigativas é bem desgastante, tanto pro mestre quanto pro jogadores. Mas é um desgaste interessante, foge a curva do que normalmente nos é oferecido nos RPGs, com capítulos robustos de combate. Uma mesa investigativa é uma espécie de quebra-cabeça abstrato que os jogadores tem que pressionar os olhos pra poder entender a imagem que estão fazendo.

Das aventuras prontas que eu já li, muitas geralmente se oferecem como um cenário, onde as pistas e fatos estão espalhados e só restando aos jogadores juntarem as peças. Algumas pistas precisam de outras pistas para serem entendidas, mas normalmente as aventuras não exigem tanta cobrança de tempo. Porém, ainda nos voltamos pro problema da leitura do mestre. A história está sendo dada a ele, e muitas coisas soam óbvio, mas botando em prática nós enfrentamos nossa própria subjetividade, seja ela intencional ou não. Sem contar que também os jogadores podem não saber usar os próprios recursos que tem acesso. Deve-se ressaltar que essas aventuras prontas tem no mínimo umas 20 páginas, então preparo para o grupo não falta!

Normalmente quando me coloco para escrever e pensar essas aventuras, elas também tem no mínimo umas 20 páginas para mais. Levam bastante tempo, e muitas vezes acabo pensando que o grupo vai solucionar mais rápido do que eu imagino. O que por muito tempo foi um grande engano meu. As vezes uma única pista pode dar muito trabalho pro grupo, as vezes o grupo foge da pista, entre outras coisas. O que nos resta é o improviso, improviso esse que exige jogo de cintura e domínio do mestre pelo próprio material que está usando, e isso tendo todo o cuidado para que os jogadores não sintam que estão ganhando as pistas sem esforço. As vezes me vejo obrigado a “quebrar” a pista em vários pedaços pra assim os jogadores chegarem onde precisam, lembro pistas para eles, outros momentos tenho que empurra-los para uma cena e não acabarem perdendo tempo com algo desnecessário, entre outras coisas...

Uma narrativa de investigação é algo bem complexo, tanto pro mestre quanto para os jogadores. Talvez, o maior desafio do mestre seja o de fazer com que os jogadores tenham a sensação de que são investigadores, ainda que sejam circunstanciais. E para os jogadores, eles precisam aceitar que não tem problema eles não serem capazes de resolver um mistério de primeira. Existem coisas que o RPG não emula da forma como nós esperamos em filmes e séries, o que ironicamente torna eles realistas nesse quesito. Afinal, o fator humano nessa situação do RPG é bem mais genuíno. Então, jogador a/e), tudo bem você se sentir mais Salsicha e Scooby do que Batman!

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