Cartas na Mesa – A “Vida e Morte Severina” no RPG.

Existe uma piada interna na Cabana do Elfo que tende sempre a ser fomentada em praticamente todos os eventos de RPG ou BoardGame que realizamos: A de que eu sou um matador indiscriminado de personagem dos jogadores. Algo que acho um tremendo de um absurdo e injusto! Acredito que os jogadores deveriam culpar a gravidade que governa a rolagem dos dados. Sem ela, os jogadores não teriam resultados tão ruins nas rolagens.

Brincadeiras à parte, de fato sou um mestre que se afeiçoa muito a sistemas letais e sombrios. Quem me conhece a um tempo sabe o quanto eu gosto de Chamado de Cthulhu (CoC), que foi a partir dele que essa minha reputação começou a ganhar forma. E para os poucos que desconhecem deste cenário, personagens humanos comuns lidando com seres cósmicos com certeza reforça uma virtual desvantagem aos protagonistas, né? CoC talvez tenha sido o primeiro RPG explicar nas suas primeiras páginas a letalidade de seu sistema, algo que passou a se tornar muito comum para vários outros sistemas que se inspiraram parcialmente ou completamente neste cenário pioneiro do horror e terror nos RPGs.

Morrer talvez seja horrível, sejamos sinceros. Pessoas plenamente saudáveis não desenvolvem essa curiosidade. Mesmo se a pessoa é religiosa, esse permanece um grande mistério. Não sabemos como é do outro lado, se existe o outro lado, não sabemos se existe a dor na morte ou se de alguma forma nos mantemos nossas memórias. Só o que sabemos é que cedo ou tarde nós vamos descobrir.

Porém, se os não-vivos tem essa resposta. Normalmente nós, terrenos, celebramos a morte. Não é uma afirmativa sinistra. A morte tem uma consequência social, afinal afetou uma pessoa que provavelmente desenvolveu suas raízes, que fez coisas boas ou ruins, e que ela vai ser lembrada pela proporcionalidade de suas ações. Portanto, a morte tem seu valor! E acreditem, muitos game designers sabem disso!

A questão é que muitas vezes esse valor é relativo. O que a morte geralmente gera em D&D? Experiência, pilhagem? E quando um Personagem do jogador (PJ) morre? Possivelmente o grupo vai pilhar ele antes, se for o caso ou importância, de enterrarem ele. Talvez o grupo esteja inclinado a ressuscitar o personagem, seja por um npc poderoso ou através de um clérigo de alto nível no grupo que seja capaz de fazer isso, talvez o pj falecido perca alguma experiência no processo do retorno a vida. Mas só talvez, a partir de todo este relato, estejamos percebendo que a morte num sistema como D&D esteja muito gamificada. Morte dos PJ pode as vezes se tornar algo mais chato do que valoroso ou dramático, mesmo desconsiderando que um grupo bem desenvolvido de RPG pode ser essencialmente um grupo de extermínio contra os desafios do mestre.

Não é exatamente uma crítica. E é inegável, mesmo se o rpg tiver uma linha sobre combate, em alguma instância ele vai lidar com a morte, e cada sistema lida com a morte de alguma maneira. O que estou tentando fazer é defender a importância da morte nos RPGs. E que possivelmente, existe a pequena possibilidade de que RPGs de alta letalidade valorizem bem mais a morte, e também a vida, do que RPGs que os personagens tenham muito mais potencial de sobreviver, e possivelmente mate bem menos do que RPGs de fantasia de poder.

Mas ai vem a pergunta: Como assim meu RPG com tentáculos e investigadores intrometidos mata menos que aquele RPG que tem mago que solta bola de fogo? Boa pergunta! E existem duas explicações: Uma na ficha e outra no tom das aventuras.

Se formos comparar uma ficha de D&D com uma de Chamado de Cthulhu, podemos perceber que perícias de combate se misturam com perícias acadêmicas, manuais e etc., indicando que o combate tem a mesma importância que “Usar Biblioteca”. Em D&D, pelo menos por onde minha experiência começa, Edição 3.0, as perícias e as formas de lutar tem modalidades distintas, e que não interferem no desenvolvimento essencial do personagem, que no caso é o combate. Portanto, o Bárbaro pode não ter uma boa graduação em Cura, mas ele bate bem forte com esse +8 no ataque corpo-a-corpo!

A segunda explicação podemos ver no tom das aventuras. Não precisamos ir muito longe também, podemos pegar aventuras prontas. Muitas aventuras de Chamado de Cthulhu buscam envolver o personagem antes de chegar num clímax violento. Uma das primeiras aventuras de CoC da sexta edição é basicamente o exorcismo de uma casa, o jogo tem uma boa introdução até chegar na casa, encorajando os jogadores até mesmo a pesquisarem um pouco mais sobre a história da casa antes de poderem ir até ela. A criatura, semi-invisivél, circunda a casa, é possível ver sinais da presença dela, drenando um pouco a sanidade dos personagens até o grande encontro. Ela só se mostra uma ameaça direta aos jogadores quando o ritual dá início, usando mortos-vivos a serviço dela para quebrar o selo de proteção do ritual. A criatura era indestrutível e mata qualquer personagem com um golpe, porém ela não é uma constante afim de exterminar os personagens, o terror deste ser mortal circunda os jogadores até o momento ideal a qual ela precisa agir.

Em aventuras de D&D, o combate é uma constante, seja por encontros aleatórios ou mesmo pelo planejamento do mestre. É muito comum aventuras prontas de D&D se passarem em grande parte dentro de masmorras cheias de monstros bem variados para os jogadores lutarem. Eles talvez sejam os últimos do elenco a serem mortos, mas todo caminho até o grande vilão da aventura normalmente é regado a muita morte de figurantes do bestiário.

Como podemos ver, as aventuras de CoC não exploram a morte como algo imediato, mas como algo que potencialmente irá acontecer se os jogadores não tomarem certas atitudes com seus personagens. Porém a contagem de corpos é bem menor do que em RPGs que exploram o combate como fonte principal de mecânica.

Outra maneira de apresentar a valorização da morte se encontra em como são construídas as regras de determinados cenários. Em Shadow of The Demon Lord (SDL), RPG de fantasia sombria de alta letalidade, fica implícito que os jogadores são protagonistas ocasionais. Isso se dá pelo simples fato das campanhas normalmente começarem no nível 0, indicando que esses personagens são civis. Caso evoluam para o nível 1, isso mostra que em alguma instância eles são especiais. Portanto, isso também indica que não tem muito dos tipos dos indivíduos que os Pjs são, capazes de sobreviver a esse mundo sombrio e caótico, fazendo com que eles não sejam quase que exclusivos, mas também importantes.

Em SDL também é perceptível que existem regras que beneficiam a condição dos jogadores. É de geral conhecimento dos jogadores desse RPG que a vida dos personagens é muito baixa, porém o jogo gerencia essa condição com a Taxa de Cura, que é basicamente uma parcela da vida que o personagem é capaz de curar, no caso ¼. Sendo assim, se o personagem for capaz de se curar duas vezes seguidas, ele basicamente curou metade de sua vida. Além disso o descanso fornece o mesmo benefício. A vida chegou a 0? Você não morre de imediato, o jogo divide a rolagem de destino em duas fases, sendo que você vai ter que começar a se preocupar se tiver que ir pra segunda fase de rolagens. Essencialmente, o PJ caído tem que contar que ainda tenham membros do grupo de pé e que o inimigo que o derrotou não decida te executar. E tem mais alguma coisa que cuide do jogador? Sim, o bom senso. O próprio livro discorre da constante letalidade, seja pelo desafio, imprudência ou rolagens ruins nos dados, alertando ao mestre que existe uma linha tênue entre o mestre desafiador ou um mestre que quer ser um adversário para o grupo. Tal como em CoC, SDL sugere a drenagem de recursos dos jogadores até chegar no seu pior destino. Existe muito mais coisas além dos pontos de vida os quais os PJs podem perder.

Outro jogo que privilegia o agenciamento do personagem até chegar no seu terrível destino é Kult Divindade Perdida. A quarta edição de Kult de fato é um jogo moderno, tanto pelas suas regras, como para a maneira de escrita. Algo que considero muito bem vindo, por que mostra que todo grupo possui um “teto” de até onde vai certos temas. Os jogadores são participantes na construção de cenário, e isso serve para que o PJ não fique deslocado por possuir elementos que não estão casando adequadamente com a narrativa. Mas tanto este RPG quando os outros jogos que citei possui a regra mais clara que todo mestre deveria seguir: “Seja fã dos personagens dos jogadores”. A tempos atrás eu tinha escrito sobre a importância do protagonismo dos jogadores no RPG, e de fato são eles que fazem a aventura do mestre ter algum encaminhamento e, portanto, o cuidado para com seus personagens deve ser levado em consideração.

Mas fica a pergunta: Por que estou falando tanto desses tipos de regras que parecem mais garantir a continuidade da vida do personagem do jogador? Simples. Para dar um significado para a morte do personagem. Como falado anteriormente, a morte tem um significado social, por que provavelmente aquela pessoa teve suas raízes e suas realizações, que por pequenas que sejam, influenciou as pessoas. É por isso que não é muito difícil pessoas se comoverem por morte de atores ou da sua professora de primário. Em alguma dimensão aquela pessoa nos afetou.

Geralmente fica para o mestre o trabalho de pedir aos jogadores para encorparem as características dos personagens, dar uma história e conexões. Nestes jogos que tenho falado, geralmente existem regras para o desenvolvimento do personagem como um indivíduo, seja para dar um ponta pé no cenário, para explorar seus antecedentes, sua aparência e etc. Porém, não são regras que afetam mecanicamente o jogo, servem tão somente para colorir o personagem, apesar de mestres criativos poderem usar isso a favor para eles. Jogos de Terror e Horror ambientados em nossa realidade reforçam ainda mais essa característica. Já que costumam emular elementos realistas nossos, também busca explorar questões de relacionamentos dos personagens. Eu mesmo muitas vezes exploro o cotidiano dos personagens, tentando fazer com que o horror e os traumas do personagem invadam a vida dos personagens. Isso tudo antes de expor o personagem a uma situação a qual ele pode correr risco de vida.

Obviamente, NPCs são muito mais papel comparado aos PJs, porém o fato de terem NPCs que desenvolvem vínculos com o personagem reforça um caráter de importância tanto para o PJ quanto para o NPC em questão, fazendo com que a perda de um deles possa ser muito impactante para o jogador, ou mesmo para todo o grupo. De fato, explorar essas questões requerem momentos de menos ação para o jogo, e geralmente essas possibilidades são muito mais comuns em sistemas as quais as rolagens são a última alternativa para o personagem.

Perder um personagem dói muito. O tempo investido nele, o nível que estava, os equipamentos que possuía, dói mais ainda quando o jogador é responsável pela morte do próprio personagem. Porém, todas essas frustações acabam por ser deixadas por questões mecânicas do personagem do que essencialmente do efeito que o personagem tem sobre a mesa, muitas vezes a dor fica mais no que estava registrado na ficha do que na história que nem cabe numa folha de papel. Não é uma queixa, muito pelo contrário, cada um joga ou narra como preferir. O que venho sugerir é como repensar a morte no RPG, não pela intensidade ou frequência dela na mesa, mas sim sobre qual tipo de influência ela vai ter sobre o jogo.

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