Mas peraí… O que é Rastro de Cthulhu?


RASTRO DE CTHULHU

AutorKenneth Hite
SistemaRastro de Cthulhu (Gumshoe)
CenárioMitos de Cthulhu
PublicaçãoRetroPunk Publicações
Linkhttps://retropunk.com.br/editora/roleplaying/rastro_de_cthulhu/

Nesses tempos de Pandemia e quarentena, temos tido problemas para proporcionar conteúdo para o blog e a página. Ainda estamos tentando nos adaptar ao momento. Para não deixarmos morrer nosso hobby por causa da distância, temos a alegria de programas, sites e aplicativos que auxiliam na proximidade dos amigos e colegas, e possibilitam a capacidade de jogar nossos jogos de RPG e de tabuleiro em mesas virtuais.

No entanto, às vezes passamos por algumas barreiras particulares no virtual que impedem que desenvolvamos partidas efetivamente interessantes ou mesmo consigamos chamar amigos para jogar. Muitas vezes eles não buscam algo tão demorado e duradouro. Talvez só algo rápido. Esse é um abismo que pode ser percebido em jogos robustos e cheios de regras que possuem uma veia no horror, como o caso de Chamado de Cthulhu.

Independente da temporada que estamos vivendo, muitos jogadores mostram uma certa resistência a um sistema tão denso, mas que apresentam uma mortalidade iminente, fazendo os jogadores tirarem um longo tempo desenvolvendo fichas sem saber qual o destino de seu personagem. Kenneth Hite apresentou uma solução pra isso...

Rastro de Cthulhu é um cenário que usa o sistema Gumshoe de Robin Laws, o mesmo sistema de Esoterrorist, que o Youtuber Cellbit usou para jogar em lives no YouTube. Gumshoe apresenta uma proposta bem particular: ser um sistema fortemente investigativo. Nesse sentindo, ele elimina o excesso de rolagens de dados, deixando esses casos para situações clímax. Somente por essa proposta enxuta já é possível ver a abrangência e versatilidade que o sistema pode oferecer num ambiente digital, como claramente vemos na situação de Cellbit e o Esoterrorist.

Numa roupagem dos anos de 1930, Rastro de Cthulhu funde o horror lovecraftiano com um ar investigativo de época. Percebesse na leitura do livro que Kenneth Hite deu bastante importância em transportar características narrativas de Lovecraft num sistema investigativo. Tanto que ao invés de no sistema clássico os jogadores imaginarem um conceito e irem desenvolvendo em sua ficha numa distribuição de pontos de perícias, o sistema oferece Ocupações que seriam mais ou menos os estereótipos comuns dos protagonistas improváveis dos contos de Lovecraft, podendo ser artistas, diletantes, médicos, militares e até mesmo andarilhos, vulgos indigentes. Todos eles possuem suas habilidades investigativas específicas e até mesmo talentos especiais que podem ser usados durante a narração. Além disso eles também possuem motivações específicas que devem escolher no desenvolvimento de seu personagem.

Motivações são a força motora do Personagem. O que levaria uma pessoa comum a encarar o desconhecido, se deparar com o horror e lutar contra ele? Esta resposta seria a Motivação. Até por que, sendo os personagens humanos como nós, eles iriam preferir evitar esse tipo de situação a todo custo. A motivação funciona de duas formas: tanto para manter o personagem dentro da narrativa de forma coesa, como também uma ferramenta dramática para exigir o personagem se contrariar a fim de fazer escolhas ou tomar atitudes que contrarie as motivações dele. Contrariar sua motivação tem custos, e eles podem ser muito dolorosos para o personagem. Motivações podem ser a Curiosidade, Vingança, Dever e etc. Todas as ocupações tem motivações específicas para escolherem na criação do personagem.

Além da Motivação, as Habilidades têm caráter fundamental no personagem. Elas que definem os potenciais do “investigador” para lidar com as situações postas a ele para solucionar os mistérios e descobrir formas de como lidar com o desconhecido. As Habilidades são divididas em 4 categorias: Acadêmicas, Interpessoais, Técnicas e Gerais.

Tirando as habilidades Gerais, as outras habilidades não exigem rolagem de dados, eles só precisam estar na cena e falar que vão usar a Habilidade: se ela for correspondente a cena, receberão a pista. Isto dá um tom mais ágil a narrativa e evita que a mesma fique defasada devido a rolagens de dados inconvenientes. Os jogadores podem gastar pontos de suas reservas de habilidades correspondentes para adquirirem informações úteis que podem até salvar a vida deles. Estas habilidades são compradas com Pontos de Investigação: para cada ponto investido numa habilidade específica de uma ocupação, o investigador terá direito ao dobro de usos de sua reserva. O número de pontos de investigação para criação de personagem é de acordo com o número de jogadores na aventura.

Já as Habilidades Gerais exigem rolagens de dados. Geralmente elas são colocadas em situação clímax, como uma perseguição, lutas físicas ou armadas e etc. Para realizar o teste o personagem só precisa rolar o dado de 6 faces e superar o limiar de acerto ou a dificuldade alvo, que varia entre 2 a 8 de dificuldade. O personagem pode gastar pontos da reserva geral correspondente para aumentar o resultado do teste na rolagem. Nas Habilidades gerais também estão inclusos a Vitalidade, a Sanidade e a Estabilidade. Eles têm o número fixo de 65 pontos na distribuição e cada ponto gasto vale somente 1 na reserva. Então os jogadores precisam distribuir com cuidado estes pontos, já que incluem a saúde física e mental o personagem também.

Diferente de Chamado de Cthulhu, em que o investigador tem somente a Sanidade para administrar o estresse do horror, em Rastro de Cthulhu esta característica foi dividida nas Habilidades Estabilidade e Sanidade. Segundo Kenneth Hite, a intenção dele era espelhar os personagens dos jogadores como se fossem os protagonistas dos livros, diferenciando sua condição física de sua condição mental. O autor até referencia alguns casos particulares, como o de Henry Armitage, professor da universidade Myscatonic, que leu diversas vezes o Necronomicon e não sofreu consequências psicológicas aparentes, representando que talvez ele tenha uma alta Estabilidade, mas uma baixa Sanidade.

A Estabilidade seria o medidor de estresse físico e psicológico quando o personagem se depara com situações extremas e incomuns a vida dele, como um assassinato, uma laceração, ou mesmo ouvir uma pessoa que morreu falando. Tende a ser drenada rapidamente durante as narrativas. A Estabilidade é sujeita a mesma condição das outras habilidades gerais para rolagem de testes, podendo também ser gastos pontos para superar a dificuldade, no entanto falhar gastando pontos pode ser mais custoso que fazer um teste sem gastos, já que gastos de pontos de Estabilidade são perdas automáticas. Para narrativas e campanhas mais novelescas, a Estabilidade pode ser recobrada por Fontes de Estabilidade. O Investigador pode ter 1 para cada 3 pontos que investiu em Estabilidade. Eles podem ser amigos, parentes e amantes que não fazem parte deste ambiente de horror. Este recurso é interessante por que pode motivar o mestre a algumas situações que coloquem em risco as Fontes de Estabilidade, ou estes mesmo personagem podem ser futuros investigadores a fim de achar aquele conhecido desaparecido.

Já a Sanidade seria o vínculo do personagem com suas atribuições mundanas, suas perspectivas e crenças da forma como ele entende o mundo. Existem condições específicas para o dreno de Sanidade, mas uma delas é quando a Estabilidade já está completamente gasta, ou mesmo o choque cósmico e a descoberta da Verdade sobre a Existência. A Sanidade é o único atributo que é drenado automaticamente, sem testes. As vezes eles são drenados junto com o que sobrou da Estabilidade. Semelhante a Estabilidade, para cada 3 pontos investidos na Sanidade, o jogador possui um Pilar de Sanidade que seria frases e jargões que representam seu forte vínculo com a humanidade, seja pela fé, natureza, ciência, amor pela nação e etc.. Coisas que no decorrer da investigação vai sendo obliterado e fazendo o investigador definhar em suas crenças, igualmente, a cada 3 pontos de sanidade perdidos, o investigador também perde um Pilar de Sanidade. Quando toda a Sanidade for esgotada, poucas opções restam ao personagem, tendo um destino semelhante ao de Call of Cthulhu: internado permanentemente num manicômio, cometendo suicídio, ou se tornando um potencial vilão.

Antes do mestre narrar, ele precisa definir o tom da aventura, algo novamente voltado a disposição do autor em referenciar a literatura de Lovecraft. Diferindo os modos de jogo entre Purista e Pulp, ou mesmo um pouco dos dois. Ambos os modos de jogo possuem ocupações e motivações exclusivas para eles.

O modo Purista seria uma aventura com um apelo muito maior no horror e na mortalidade. Os investigadores não recuperam a Estabilidade, sua Vitalidade não pode cair para o negativo, geralmente os vilões não possuem formas convencionais de serem derrotados, e na maioria dos casos a conclusão da aventura ocorre de forma trágica e inevitável, com consequências a curto ou longo prazo para os Investigadores.

O estilo Pulp, referente as literaturas de ação e aventura publicadas junto com as obras de Lovecraft, é um modo de jogo mais voltado para aventura, com direito a estereótipos de antropólogos aventureiros batendo em cultistas, que também podem ser nazistas, enfrentar um ritual maligno iminente, aventuras expedicionárias ao estilo Indiana Jones e etc. Nesse modo de jogo, os investigadores estão um pouco mais seguros. O limiar de acerto para inimigos comuns é menor, os investigadores aguentam mais os ferimentos, podendo sofrer danos até o negativo de sua Vitalidade, a Estabilidade é recuperada de forma comum, e às vezes o desfecho pode ser positivo para os personagens.

Por ser um sistema investigativo, muitas vezes o mestre vai querer apresentar recursos físicos ou visuais, algo interessante para apurar a interatividade entre os jogadores. Numa mesa virtual isto não perde a qualidade, com acesso à internet e uma gama de imagens, mapas e até mesmo fotos antigas, e até mesmo efeitos sonoros e trilha sonora, o mestre pode proporcionar ao grupo uma ambientação enriquecedora e tangível a eles.

No entanto, apesar do sistema apresentar facilitações narrativas, muitos jogadores, podem não achar muito interessante como boa parte das narrativas acabam sendo conduzidas. Muitos mestres veteranos afirmam que o desenvolvimento de uma aventura de Rastro pode acabar sendo meio Railroad, como se a aventura fosse conduzida em trilhos, com poucas chances ou nenhuma do Investigador fazer algo diferente do esperado. De certa forma existe uma certeza sobre isso. Muitas vezes, pelo sistema ser enxuto, jogadores afobados podem querer ficar chutando habilidades até descobrir qual a certa para conduzir a investigação, as vezes tornando a narrativa mais mecânica que orgânica. Essa situação pode ser contornada se o mestre tiver controle sobre as reservas Investigativas dos personagens, sabendo como cada um pode funcionar em cada cena. Por outro lado, acabando por se voltar para o estilo Railroad da narrativa. Sabe-se que existem muitas aventuras prontas de Rastro que tiram esta sensação, no entanto o sentimento ainda se faz presente, afinal a pista só será engatilhada se as habilidades certas forem usadas.

Apesar das críticas fazerem sentido, talvez alguns jogadores não tenham absorvido da forma correta Rastro de Cthulhu. Esperando que ele seja tão denso quanto seu irmão mais velho, não percebem que na verdade ele é um excelente sistema de porta de entrada para o Horror Cósmico, e mais do que isso, um instrumento muito facilitado para narrativas rápidas, e nesses tempos de distanciamento social, para a criação de mesas virtuais.

Rastro de Cthulhu é um sistema muito bem-vindo para as prateleiras de adeptos de sistemas de terror e horror. Ele é simples, mas não menospreza o jogador, além de fazer um grande esforço de criar um diálogo direto entre a literatura e o RPG, fazendo ele de fato ser um sistema feito para agradar os fãs da literatura lovecraftiana.

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