Tempos atrás eu escrevi aqui no Blog uma resenha sobre Kult Divindade Perdida. Foi como pisar em ovos. Parece que entre alguns jogadores de Kult ou não-jogadores se criou uma imagem de que este RPG é como assistir pornografia na festa de natal da família. Ou seja, Bem impróprio e pra causar polêmicas.
Kult Divindade Perdida tem um estigma. Um estigma que muitas vezes impede jogadores de poderem mergulhar no universo deste RPG. Em parte é devido ao seu passado envolvido em crimes na Suécia, país de origem, mas isso também pode ser culpa de alguns fãs, tentando bancar os extremamente sombrios e politicamente incorretos para dizer que seu RPG é maduro e polêmico.
Kult de fato é maduro, promover um mote de que humanos na verdade são divindades que esqueceram suas identidades e que para recupera-las tem que rasgar um véu de ilusão ultrapassando os limites da moral e da ética realmente é um assunto muito complexo, portanto precisa ter maturidade para tanto jogar quanto abordar os temas. Porém Kult é tão maduro quanto Chamado de Cthulhu e Vampiro a Máscara, que possuem esse reconhecimento generalizado. E são jogos devem ser tratados como tal.
A questão que fica sobre Kult é que se foi criada uma imagem de que o jogo incontrolavelmente vai debandar para alguma espécie de thriller psicológico misturando sexo e violência. Sim, Divindade Perdida tem um capítulo só sobre sexo, mas é extremamente abrangente abordando sexualidade e até mesmo alegorias psicológicas sobre a própria sexualidade, enfim. Kult não é só sobre isso, e hoje, também como uma desculpa para recomendar outras mídias além de jogos analógicos, trarei alguns filmes, séries, animes e até a literatura que podem ajudar jogadores e interessados no cenário a entender melhor como Kult pode ser explorado.
Muito além da violência e sexo abordado em Kult, ele explora desde a primeira edição temáticas como o “estranho” e um horror da modernidade. Em Divindade Perdida essa última temática foi incorporada como uma espécie de Horror Social, que se popularizou no que chamam Pós-Terror. Eu adoro o estranho propriamente dito, e Kult deixa fortemente implícito que a realidade de nosso mundo é um construto generalizado para facilitar nosso adestramento e assim esquecermos nossa divindade. Os paralelos com críticas sociais são muito fortes.
Mas agora apresento a vocês quatro mídias geniais para Kult!
Death Note
Temas Interessantes: Investigação, Jogos Mentais, Poder.
Sim, a primeira recomendação é bem popular até para os mais novos. Ele brilha justamente por que seu aspecto sobrenatural encontrasse quase que completamente em segundo plano na narrativa investigativa e seu jogo de gato e rato. Claro, existem alguns trechos do anime que sugerem que está sendo cumprida uma espécie de agenda de anime para jovens adultos, mas ainda sim é mantida uma narrativa madura e sujeita a várias discussões. A parte sobrenatural do anime estão nos shinigamis e seus cadernos de morte. Isso mesmo! Não é uma foice ou um instrumento fúnebre simbólico, mas sim um simples caderno. Você anota o nome de alguém que você conhece de alguma maneira e essa pessoa morre momentos depois. Os shinigamis são vistos por algumas poucas pessoas que detém esse caderno, mas eles essencialmente não são perigosos, tanto que as razões para alguém morrer por eles são tão arbitrárias que eles conseguem ser mais inofensivos que o vilão Light Yagami. A história instrumentaliza esse elemento sobrenatural para criar uma jornada de investigação com ares messiânicos. Uma narrativa interessante que aborda questões sobre a moral, justiça e poder sob uma perspectiva que apesar de extrapolar os limites da humanidade, encontrasse numa história bastante pé no chão.
Paranoia Agent
Temas Interessantes: Delírio Coletivo, Ansiedade Social.
Outro anime, mas esse possui um status Cult, não “Kult”. Foi a primeira e única entrada de Satoshi Kon no mundo dos animes, com trabalhos que abordam a cultura japonesa moderna mas sempre pontuando com elementos sobrenaturais ou surreais com um pouco de humor e reflexão. Paranoia Agent é um anime bem esquisito, mas é uma obra excelente. A história conta de uma série de atendados criminosos em que um garoto de patins e um taco de metal vem atacando pessoas, ele foi apelidado de “Shonnen Bat”. Enquanto a polícia investiga esses atentados, nós acompanhamos a história de outras pessoas que foram atacadas por esse garoto, e por mais estranho que seja, as vítimas tem se sentido aliviadas e felizes depois desses ataques. Com o tempo e a falta de solução a polícia, as pessoas começam a ver Shonnen Bat como uma espécie de entidade, as vezes até mesmo uma solução para seus problemas. O anime explora vários elementos não só da cultura japonesa, mas também da ansiedade social e a sociedade de consumo. Apesar de seu desfecho fantasioso, o anime consegue sustentar facilmente sua mensagem.
Videodrome
Temas Interessantes: Sociedade do Espetáculo, Violência
Possivelmente a obra mais gráfica destas recomendações. Videodrome é outro caso do usos de elementos surreais com a modernidade para passar uma mesagem alarmante sobre o rumo da humanidade. A história conta sobre Max Renn, o diretor de um canal de tv a cabo que possui programas de qualidade duvidosa, explorando violência e sexo para poder atrair o máximo possivel o público. Max ambiciona que o seu canal de tv seja mais relevante, e é quando descobre o programa de TV “Videodrome”, onde pessoas são torturadas ou morrem violentamente nas telas. Acreditando que o futuro da televisão esteja na violência espetacular, Max então procura trazer o programa para a emissora, e enquanto conhece mais e mais o programa, percebe que existe um limiar muito pequeno entre a realidade e a ficção, que as relações humanas podem ser mais insípidas em frente a tv e que a naturalização do espetáculo da violência precisa forçar seus limites para continuar sendo atrativa. Como falei anteriormente, esse é um filme bastante gráfico, tudo isso graças ao trabalho de David Cronenberg, com cenas de horror corporal bem criativas que, apesar de serem violentas e desagradáveis, não são gratuitas, sempre tendo algum fundo de reflexão.
O Embargo, de José Saramago
Temas Interessantes: Homem x Máquina, Política.
Essa é a única das indicações que se encontra na literatura. Encontrado no livro de contos Objecto Quase de José Saramago. Em O Embargo, um protagonista sem nome sai com seu carro para suas tarefas rotineiras de trabalho. Porém, ao invés de chegar no seu destino, o carro toma controle para si e faz desvios para vários postos de gasolina, fazendo com que o homem estivesse a mercê do veículo para alimenta-lo com gasolina, como se o veículo estivesse desesperado para encher seu tanque. A razão disso seria um embargo político em Portugal que fez com que os postos de gasolina não fossem abastecidos e eventualmente deixando postos de gasolinas esgotados. Uma das marcas registradas do autor é seu trabalho com frases que quase não tem virgulas, fazendo com que a leitura tenha muito menos pausas, um elemento interessante para esse conto, reforçando um caráter de terror psicológico na história. O embargo usa da fantasia e da tensão para mostrar os efeitos do embargo para um cidadão dependente de automóveis, mas também sobre a instrumentalização e a dependência do indivíduo sobre algo, onde no momento dessa história o humano torna-se o instrumento do veículo.
Menções Honrosas:
Kult já tem suas inspirações próprias vindas de cinema e séries, outros casos são de que certas obras ficam muito na cara que tem uma temática semelhante a de Kult. Mas antes de trazer essas menções, logo adianto o que falei anteriormente: Kult é anterior a Matrix. Então é mais provável que as irmãs Wachowski se inspiraram nesse RPG para produzir a franquia. Mas aqui vão algumas menções:
Dark City: Uma das Inspirações para última edição de Kult, conta a história de um homem desmemoriado que vive numa cidade sombria e é perseguido por indivíduos albinos psiônicos vestidos em trajes pretos.
Cat Lady: Outra inspiração pra Divindade Perdida, dessa vez um jogo de PC. Uma mulher se suicida, mas quando sua alma está para ser arrebatada, uma entidade a obriga a retornar a sua vida e resolver alguns problemas particulares.
Twin Peaks: Uma das minhas séries prediletas, e a inspiração para as primeiras edições de Kult. Surreal, misteriosa e bem esquisita, mas maravilhosa. Ela não é essencialmente de horror, mas possui muitas partes sinistras e confusas. Apesar de seu primor de qualidade, não é uma recomendação para todo mundo.
Alucinações do Passado: Dizem que foi outra inspiração para Kult, mas não achei nada. Apesar de tudo, fica bem na cara que isso seja verdade. Jacob é um veterano do Vietnã sofre que alucinações e manias de perseguição, que não sabe se são reais ou não. Ele procura saber as razões para esses delírios.
Franquia Hellraiser: É de conhecimento geral que as primeiras edições de Kult eram fortemente inspiradas pelas obras de Clive Barker, visualmente Divindade Perdida foi se afastando, mas suas temáticas ainda permanecem em alguns galhos narrativos. Não preciso dizer muito sobre essa franquia já tão conhecida para os fãs de terror. Mas para os que desconhecem, as histórias dos filmes giram em torno dos curiosos que desvendam o Cubo das Lamentações, invocando Pinhead e seus servos afim de arrastar essa pessoa para uma dimensão de dor e prazer a qual eles julgam ser a recompensa máxima.
Franquia Silent Hill: Outra franquia de videogames de Terror muito conhecida. Os jogos se concentram numa cidade americana chamada Silent Hill, quase como se fosse um Triangulo das Bermudas americano. Os azarados ou aventureiros que passam pela cidade são confrontados por monstros que por vezes são alegorias dos seus próprios traumas e horrores pessoais.
Conclusão
Kult realmente não é um jogo para todo mundo, mas não necessariamente por conta do sexo e violência que o jogo aborda. É até injusto e redutivo relativizar o RPG dessa forma, principalmente por que esses são tão somente elementos, e elementos que podem constituir qualquer RPG de cunho adulto. Com estas recomendações eu busco ambientar os mestres e interessados no cenário de forma a entender o que realmente Kult busca proporcionar. Que essa busca pela divindade que trespassa os limites da humanidade podem ser abordados de diversas formas. Não é a toa que Divindade Perdida veio numa época de filmes com temáticas de um Horror Moderno e Social, onde tudo o que normalmente vemos como comuns e cotidianos pode se tornar perturbador e estranho quando manipulado de forma criativa.
E vocês, que recomendações de inspiração dariam para o cenário de Kult Divindade Perdida?
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