Obviamente, mestre, quando você convida potenciais jogadores para o seu RPG, provavelmente você tem a intenção de contar uma história a qual eles são os protagonistas. Independente se eles sejam só um grupo de aventureiros que realizam suas missões longe da importantíssima incursão política que reflete a toda a vida destes personagens, você mestre está tornando aquele grupo de personagens jogadores (ou PJs, pra simplificar daqui por diante) importantes para aquela tarefa a qual lhe foram condicionados. Eventualmente esse grupo talvez seja influente nesta incursão política, ou mesmo, sem eles saberem, tal missão que estão realizando pode indiretamente influenciar em toda a narrativa.
Mas claro que o Mestre sabe de tudo isso, afinal a importância dos eventos é toda dedicada aos seus jogadores. Porém, de forma discreta, boa parte dos sistemas de RPG buscam dar esse protagonismo para os jogadores. Mas não estou falando do capítulo do mestre, o qual ele ensina como o mestre deve tratar seus jogadores (é estranho, mas tem mestre que não sabe lidar mesmo!), estou falando das regras!
Só fui me dar conta deste detalhe com Savage Worlds, jurando até que fosse uma característica exclusiva desse sistema, o que não é! A única diferença é que em Savage Worlds a atenção das regras para com o jogador é mais explícita, tornando as “regras de protagonismo” fundamentais para destacar os PJs dos demais personagens, principalmente pelo seu caráter cinematográfico de filmes de ação.
Isso é no mínimo interessante. Não estou falando meramente do capítulo do jogador, que tão claramente os jogadores constroem e desenvolvem seus personagens que se destacam de outros personagens não-jogadores (PNJs) comuns. O próprio mestre pode fazer exatamente a mesma coisa, mas não aplica as regras exclusivas para os PJs, a menos que seja conveniente. Falo destas regras exclusivas que dão subsídios de importância para os PJs.
"Mas por que os jogadores são tão importantes ao ponto de terem regras só pra eles?"
É uma pergunta idiota, isso é verdade. Mas tem um argumento mecânico que explica muito bem o por que: sem os jogadores, o mundo está morto.
"Mas como assim o mundo está morto?"
Pra essa discussão nós temos que nos colocar na nossa realidade. Para todos os efeitos, o mundo, digo, a humanidade está viva. As pessoas tem uma vida independente das nossas, uma rotina e até mudanças que refletem a sua própria vida particular. Nós viajamos, estudamos e trabalhamos, mas aquele açougueiro italiano ainda está fazendo as coisas particulares da sua vida sem depender de nós.
Por outro lado, a vida no mundo do RPG permanece morta. Esse mundo só volta a ter vida graças aos PJs. O mestre não precisa se preocupar com o que o açougueiro faz da vida, afinal, ele sequer existe, quem existe são os PNJs que vão sofrer as interações dos PJs, aplicar os desafios, serem as ameaças. No máximo o mestre apresenta o plano geral desse mundo, os assuntos importantes e tudo o que os PJs vão eventualmente encontrar no caminho, obviamente dentro dos planos do mestre.
“Mas Marcus, se uma missão tiver prazo e os jogadores se concentrarem numa outra coisa, vai ter alguma consequência!”
Realmente, mas a consequência não é um sinal da vida nesse mundo, até por que tal fato somente aconteceu em consequência de uma potencial negligência do grupo.
Obviamente, existem ocasiões que o mestre prefira colocar um PNJ para resolver essa missão negligenciada, fato este que salvaria a pele dos PJs como um novo personagem no grupo, uma espécie de rival ou mesmo um novo antagonista, portanto mais alguém que nasceu para constituir os desafios e interações dos PJs. Caso o PNJ só tenha existido com a única função de resolver um problema, o mestre acabará por demonstrar uma certa inexperiência por não ter planejado uma consequência para o grupo por uma negligência desse tipo, ou mesmo uma arrogância ao mostrar que os PJs estavam impotentes e que alguém resolveu tal problema sem nem sequer ter sido mostrado como.
Mesmo cenários de RPG, que já possuem uma história estabelecida inicial, tem seu mundo sem vida pela falta de jogadores. Os PJs que continuam a vida destes personagens construídos para o cenário, de outra forma eles estão defasados, como se a página seguinte da vida de determinado personagem esteja em branco e os jogadores são os responsáveis pela continuidade desta biografia, onde a única coisa a qual eles não são responsáveis é pelo que anteriormente foi escrito que eventualmente vai retornar nesta nova página.
Os jogadores são aqueles seres alienígenas que caminham pelo mundo do mestre. Essa é uma afirmativa esquisita, de fato, mas não é uma afirmação negativa. Quando falo do jogador alienígena, não estou falando de um ser de outro planeta, mas sim com o fato dele ser um estrangeiro naquele mundo.
Convenhamos mestre, você pode fazer 50, 100 PNJs, mas todos eles têm um pouco de você na forma como está interpretando. Não precisa nem de tantos personagens para perceber isso, você percebe quando eventualmente precisa transformar o personagem de algum jogador que faltou em um do mestre. Os jogadores são indivíduos estranhos no mundo do mestre, agem dentro das regras daquele mundo, mas pelo fato de não pertencerem àquele mundo, eles fazem ações que normalmente não são esperadas pelo mestre, o que torna as coisas muito interessante! Graças a esta imprevisibilidade, as narrativas e a construção daquele mundo se tornam algo coletivo e igualmente incomum, não unicamente uma atividade de uma só pessoa que espera todas as coisas que venham propriamente de sua mente, mas algo inesperado e no mínimo incrível.
"Mas então, por que as regras?"
Elas são uma espécie de garantias da durabilidade e do sucesso dos jogadores, como também podem ser mecânicas para desafiar o jogador ou dar características narrativas que normalmente colorem o personagem. Geralmente os jogadores cobram a aplicação das regras que garantam essa continuidade ao personagem, mas não as regras que “ferram” seus personagens. (rs)
Por serem exclusivas aos jogadores, o mestre pode deliberadamente ignorar isso para qualquer outro PNJ, fazendo com que, por exemplo, ameaças sejam aplicadas com mais facilidade ou instantaneamente contra personagens não jogáveis, enquanto que por via de regras isso seria mais difícil com os jogadores. Estas regras, discretas ou não, são formas representativas de indicar que os jogadores são importantes. Podem ser heroicos ou sujeito a ameaças específicas que só fariam sentido claramente quando afetadas de forma minuciosa ao jogador, como se fossem sintomas de uma doença que os PJs ainda são capazes de curar.
Outro fator se dá pela importância dos PJs o qual foi citado acima. De fato eles são peças importantes para a narrativa, no entanto para que eles possam sentir sua participação de forma efetiva, podem existir regras exclusivas que garantam chances da continuidade de seus personagens.
O mestre, acredito eu, pode até achar que nenhum PJ é um desperdício, mesmo que ele tenha morrido na mesma sessão que ele tenha sido criado, porém, para o jogador é um pouco diferente. O jogador botou energia, e as vezes carinho, naquele personagem, por mais pobre de história que ele possa ser, pensou em como construí-lo de forma adequado para sua satisfação, para o do grupo, ou para ambos os casos. Essa é uma dedicação que ele espera resultados e nem sempre precisam ser em combate. O sucesso narrativo independe de quantos combates o RPG precisa ter e muitos jogadores as vezes preferem fazer personagens não tão combatentes.
Outro fator diz respeito a intenção de criação dos personagens. Os jogadores criam seus personagens na intenção de serem desafiados e que sobrevivam a estes desafios, enquanto que o mestre possui monstros e inimigos que aplicam os desafios e... sejam derrotados! Partindo desta premissa, é mais do que coerente que possam existir regras que promovam uma maior continuidade do PJ.
Para reforçar o entendimento, eu apresento algumas regras comuns de sistemas populares, discutindo um pouco sobre elas e de como são aplicadas nos sistemas.
Rolagens para Resistir à Morte e Rolagens de Destino
Sistemas: D&D, Shadow of The Demon Lord, Savage Worlds e 3D&T
Esse é o mais comum e menos discutido sobre. Basicamente, quando um personagem tem sua vida zerada, ele é sujeito a um teste de resistência final, seja pra dar tempo dele ser estabilizado ou mesmo para determinar que ele ficou inconsciente. Enquanto que um é um teste de resistência que envolve modificadores presentes na ficha do personagem, o outro depende um pouco mais da sorte nos dados. Para todos os efeitos é uma mecânica que raramente é aplicada em PNJs, na verdade é muito natural e um alívio para os jogadores que isso sequer exista contra aquele maldito vilão esponja de danos. Podem existir mil guerreiros no mundo de D&D, entre eles os mais habilidosos, mas só o do jogador sempre será aquele capaz de resistir um pouco mais para lutar, mesmo com aquele profundo corte em diagonal no seu tronco que pode ter deixado ele em coma. De certa forma ele é especial, mesmo que eventualmente tenha sido num principiante, mas por conta disso, isso dá mais vontade de viver, lutar e se aperfeiçoar.
Pontos de Saúde Negativos
Sistemas: D&D, Rastro de Cthulhu
Soa estranho, mas em alguns RPGs, além dos pontos de vida comuns dos PJs, eles também possuem um número limitado de pontos negativos de saúde. Ele pode tanto servir como uma espécie de contador de rodadas até o personagem ser estabilizado, ou também podem ser pontos de vida restantes do personagem para ele continuar lutando, que neste caso, se esgotado, o personagem está declaradamente morto. Em campanhas Pulp de Rastro de Cthulhu, esta mecânica é comumente usada, enquanto que em narrativas puristas, os personagens dos jogadores são tão vulneráveis quanto qualquer outro personagem humano do mestre. Para todos os efeitos, esses pontos de vida, ou contadores podem ser tratados como pontos de vida temporários caso o personagem passe por algum teste, como em D&D, como se fosse sua vontade de continuar lutando. Nem sempre estar de pé nessa condição é vantajoso, por que normalmente estar com pontos de vida negativo trazem outras penalidades ao personagem. Por fim, obviamente, quando a vida do personagem do mestre se esgota, ele definitivamente está morto.
A saúde ou resistência dos PJs é maior que de PNJs comuns
Sistemas: Savage Worlds, Jogos “Powered By the Apocalypse” e uma boa parte de jogos de terror
Essa não é bem uma regra, está mais para uma característica. Característica essa que se faz presente em muitos RPGs de terror. Basicamente o personagem tem condições de sofrer mais ferimentos que PNJs comuns. Algumas explicações narrativas indicam que seja por que talvez esses personagens possuem essa capacidade pois tem alguma familiaridade com aquilo que estão lidando. Portanto, o humano do jogador pode ser mais forte que um humano comum do cenário em questão. Em Savage Worlds é mais explícito, e a explicação é que os personagens dos jogadores são praticamente protagonistas de filmes de ação. Essa característica tem uma explicação mecânica muito mais forte para RPGs de terror. Estes normalmente são investigativos ou exigem que os personagens façam buscas particulares e que dizem respeito a sua própria identidade. Matar personagens antes de um clímax ou da apresentação definitiva da ameaça é desgastante tanto para os jogadores quanto para o mestre que gastou tanto tempo e energia para ligar pontos e preparar o momento apoteótico da narrativa. Portanto, essa é uma característica muito positiva em narrativas de terror. É perceptível? Com certeza! É barato? De forma alguma!
Conclusão
Como pudemos ver, todos estes exemplos dizem muito respeito a formas variadas, e exclusivas, que o personagem do jogador pode ter para lidar com ameaças a sua vida de forma geral. Como disse antes, essas regras são uma espécie de garantia para que a participação do personagem seja boa o suficiente para que o jogador sinta que contribui na narrativa. Admito que por muito tempo torci o nariz com estas regras, como se faltasse uma igualdade em relação aos personagens dos jogadores e aos do mestre, mas as mecânicas são diferentes, a forma como eles se relaciona com a narrativa, e principalmente, num combate são completamente diferentes.
Afinal, para o grupo lidar com um dragão, precisam de uma completa sinergia, enquanto que este dragão foi projetado para lidar com tal grupo e facilmente pode aniquila-los se faltar estratégias dos jogadores. Eles só vão ter tempo de pensar nisso se o jogo garantir chances de sobrevivência a eles se eventualmente falharem. Portanto, regras como essas são mais que bem vindas como alternativas para mostrar o protagonismo pleno dos jogadores sobre suas próprias histórias e na forma como vão influencia no mundo do mestre.
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