Cartas na Mesa – As Famigeradas Mesas Pagas

Não é de hoje que vejo mestres de RPG oferecendo mesas pagas para a comunidade de RPG. Esse assunto ainda se mantém muito polêmico entre os hobbystas do gênero, e é bem comum vermos no anúncio das mesas pagas algum comentário reclamando ou criticando a atitude do mestre como se fosse algo que contrariasse a natureza do RPG.

Sou sincero desde o início em dizer que nunca participei de uma única mesa paga pois nunca vi necessidade de pagar para jogar RPG, afinal, se não sou jogador, eu sou o mestre, função essa que vi muitos amigos experimentando ultimamente. Mesmo ocioso no meu hobby, nunca senti a necessidade de pagar alguém para narrar caso eu estivesse disposto somente a assumir como um jogador. O ponto aqui é ter um olhar macro e o mais imparcial possível, mostrando que alguns argumentos contra essa realidade comercial no RPG não fazem sentido e que pra se entender melhor sobre o assunto, precisa observar as coisas sob os olhos do mestre que se propõe a fazer isso. Para isso, busco fazer um pequeno paralelo marxista sobre a situação.

A capitalização do ato de mestrar

Nas primeiras páginas de O Capital de Karl Marx, ele fala que dentro de um contexto capitalista tudo pode ser comercializado. Ele exemplifica ao falar da Bíblia como mercadoria, referenciando que aquele livro cheio de saberes sacros inevitavelmente será um produto numa sociedade capitalista. Da mesma forma podemos olhar para a prática das mesas pagas. Aqui o mestre está oferecendo sua narração como uma espécie de força de trabalho, imagina-se que para ele assumir esse papel capital, ele no mínimo, precisa se destacar de um mestre que casualmente narre para seu grupo.

Nesta situação assumimos duas possibilidades da existência de um “mestre pago”.

A primeira possibilidade é a já citada, o mestre se coloca numa posição em que ele precisa dar razões para que ele se destaque de um mestre comum, que a sua narração e a experiência na mesa seja completamente diferente e excepcional comparada a uma mesa convencional de RPG. Algo que dê motivos para que aquela mesa seja paga.

A segunda possibilidade está na carência de mestres para um grupo, o que na minha opinião é uma situação completamente contornável se os jogadores começassem a ler algum RPG e praticar o ato de narrar, mas se não existe essa atitude então nasce uma demanda de jogadores sem mestres que eventualmente se veem na necessidade de pagar para poder jogar.

Em ambas as circunstâncias possíveis, sempre se é aplicada uma exigência de qualidade para algo que se é investido.

A discussão sobre o assunto é muito acalorada. Geralmente por que existe o apelo emocional de que a diversão é coletiva e precisa existir uma “troca” para que o RPG seja divertido para todos, considerando que o fato de pagar para jogar RPG contrarie o “espírito” contido no hobby. De fato, existe uma impessoalidade na relação cliente e profissional que cria um pequeno abismo emocional entre o mestre e os outros jogadores. Por outro lado um mestre que se coloca numa posição de vendedor de um serviço reforça uma necessidade de agradar seus clientes, não necessariamente dando itens mágicos ou mantendo-os vivos, mas sim proporcionado elementos que podem ser agradáveis aos jogadores, ouvindo-os e criando a experiência que eles pretendem ter em mesa, deixando de ser um trabalho pessoal do mestre e sendo uma atividade que o foco é tão somente os jogadores, deixando um pouco de lado a diversão do mestre.

Existe uma espécie de estigma em gastar dinheiro numa prática de diversão coletiva, algo que, se retrocedermos um pouco percebemos que gastamos e consumimos bastante pra jogar RPG. Suponho que todos os nossos game designers devam gostar de jogar RPG, tanto que produzem livros para nos divertirmos, porém, infelizmente eles não fazem esses livros gratuitamente, apesar de possivelmente eles acreditarem que RPG seja uma diversão coletiva. Gastamos com dados, miniaturas e os livros já citados, tudo isso para podermos nos divertir. Eu entendo, a crítica não é exatamente no gasto, na forma de capitalizar com a diversão, mas sim no valor humano, gastar para ter alguém ao nosso lado para assumir uma função de mestre é algo esquisito, e contraria a maior parte dos jogadores. Vale ressaltar que boa parte desses jogadores já tem um grupo formado e estabilizado com seus mestres para poderem jogar RPG, se não são jogadores que apesar de não jogarem tanto, são satisfeitos com o estilo de mestres com quem jogam. A questão aqui é que o mestre de mesas pagas não está oferecendo a mesa para estes tipos de grupos ou jogadores, mas sim para pessoas que realmente se interessam, sejam pela curiosidade ou mesmo pela reputação.

Sob os olhos de um mestre pago

Sob o olhar de um mestre de mesas pagas, a forma como fazem um investimento é diferente de um consumidor convencional. E me coloco como exemplo: eu possuo bastante material de RPG, inclusive minha bolsa de dados mal cabem os dados que possuo, e eventualmente busco investir em alguns programas digitais para partidas online, porém faço isso pelo meu gosto pelo hobby, pelo prazer de estar entre amigos e simpatizantes, principalmente os pertencentes a Cabana do Elfo e seus seguidores, meu investimento e de muitos outros RPGistas é pela diversão. Já um mestre de mesas pagas, pelo menos pelo que eu consigo ver e imaginar, foca o investimento dele num propósito mais comercial, com um material abrangente e versátil para o que ele pretende oferecer em sua mesa, sem contar o tempo gasto produzindo aventuras, revendo regras, criando NPCs, cidades, separando inimigos e ETC. Isso se o material dele não for algo completamente autoral, requerendo ainda mais esforço. Basicamente, o esforço mental e psicológico, seu tempo em reflexão e energia, tudo isso conhecido como “trabalho intelectual”, é incluído no montante de valor que o mestre julga cobrar. Minha comparação com um mestre pago é bem próxima a um DJ contratado para uma festa, que não só traz todo seu aparato sonoro e visual, como também seleciona músicas previamente e de acordo com cada momento e temática da festa para poder agradar seus Clientes.

Vamos ser sinceros, o trabalho do mestre é enorme e desgastante, e as vezes o retorno da diversão é muito inferior, principalmente para jogadores ausentes e desinteressados. Por vezes já encarei jogadores que falavam que “o trabalho do mestre é agradar/divertir jogadores”, ou mesmo eventualmente desistindo das mesas sem feedback ou uma explicação. O trabalho para uma narrativa recai totalmente para o mestre, que sua diversão acaba sendo o resultado do sucesso da mesa e o interesse de continua-la. Da feita que alguém fala uma frase como a que eu citei acima, a justificativa pra existir mestre pagos se intensifica, fazendo não só que um grupo de jogadores queira contratar um mestre, mas também o mestre daquele grupo esgotado de aplicar criatividade e empenho em algo que o retorno é totalmente inferior ao esforço físico e mental que empregou. Portanto, se essa tão querida “troca” que tanto falam é inexistente ou desproporcional, claramente existirão mestres que não vão se importar com isso e fazer negócio para jogadores carentes de mesa.

O mestre pago dentro da comunidade de RPG

É inegável, mesmo para o olhar de um consumidor, a oferta de mesas pagas soam pouco convidativas. Por vezes em meu Facebook já vi banners de chamadas de mesas pagas que quase pareciam que o mestre estava oferecendo aulas de reforço, com um banner tão espartano quanto a sua abordagem na postagem, então se existe um problema da discriminação dessas mesas, ao menos numa parte o mestre pode acabar sendo responsável, muitas vezes faltando fazer uma melhor propaganda do seu trabalho ou mostrar-se ativamente na comunidade. Achar que é capaz e ser capaz são duas coisas completamente diferentes, e muitas vezes ofertar sem ter nenhum antecedente ou reconhecimento é o mesmo que marcar um encontro as escuras, dando mais vazão para não consumidores criticarem esta abordagem. Neste ponto, a impessoalidade comercial pode ser um obstáculo pra quem quer entrar nesse mundo.

Conversando com alguns mestres e vendo algumas outras postagens, é perceptível que existe um esforço nesses mestres. Claro, sempre vão haver mestre ruins e/ou pedantes que dizem oferecer uma mesa diferencial, mas envolvidos neste ramo, é possível ver que mostram a cara a tapa, afinal continuam a tentar oferecer seu trabalho enquanto lida com quem os discrimina.

Esforço para vender não falta, chegando a ver mestres que apresentam qualificações relacionadas a elementos do RPG, como um curso de atuação para reforçar sua interpretação, ou até mesmo um caso recente em que vi um mestre oferecendo uma mesa na qual o requisito era jogar falando em inglês, para treinar o vocabulário dos participantes. De fato, eu sou do time que acredita que qualificações são bem vindas, até por que, apesar de muitos mestres se intitularem “mestres profissionais”, este título não existe, assim sendo acharia essencial num aspecto profissional, qualificações. Conversando com outros jogadores, eles me alertaram por este meu rigor por certificados, afinal, se isso se tornar uma espécie de padrão, poderia dar vazão a cursos rápidos predatórios para orientar possíveis mestres pagos, o que novamente, por si só, não existe qualificação!

Dentro desta discussão percebi que narrar está mais relacionado a uma habilidade que requer treino do que um amontoado de técnicas ligadas a qualificações profissionais, e eu pensando desta forma, excluiria muitos mestres excelentes que não tem esse tipo de qualificação, enquanto que outros podem ter e nem sequer são competentes. Por fim, a conclusão foi que, tal como num currículo, ter habilidades relacionadas ao que quer trabalhar dá mais chances para aquele mestre ser contratado do que exatamente comprovar que ele é bom.

Dicas que podem ajudar possíveis mestres pagos

Nestes últimos anos que fui vendo esses anúncios e conversando com alguns mestres, já vi e ouvi bastante coisa, principalmente de gente bem antiga do ramo, e aqui mando alguns conselhos colhido por eles:

• A menos que você seja um Matthew Mercer, um Mestre PedroK ou até mesmo um Cellbit, nesse sentido, ter um grande reconhecimento, um mestre pago nunca vai ganhar a vida com suas mesas, na verdade esse tipo de trabalho seria só um complemento ou parcela de todo um comércio relacionado ao que busca trabalhar com RPG.

• Faça uma demonstração do seu trabalho, uma partida de RPG gratuita para um novo grupo, ou mesmo uma gravação de uma partida de uma de suas mesas pagas, se possível em vídeo, o ideal é mostrar esse diferencial para os jogadores, afinal a comprovação de sua competência é o que vai determinar a decisão dos jogadores ao contratá-lo.

• Seja maduro! Entrar neste mundo é dar o cara a tapa e você sabe que essa função rende muito questionamento e crítica. Esclarecer suas capacidades sem ser pedante é essencial para que clientes se interessem pelo seu trabalho, caráter e boa vontade ainda são características atrativas para o público.

• Se valorize! Da mesma forma que é necessário esclarecer e entender a posição dos não-clientes, considere que seu trabalho tem qualidade, e não só oferte para clientes, como também para eventos especializados. Fazer uma reputação demonstra o quão integrado e disposto você é no ofício que está comercializando.

Não sou um mestre de mesas pagas, mas posso garantir que essas são dicas básicas que refletem a uma realidade de oferta profissional autônoma que tem sido normalmente apresentada online. Um espaço que tem a barreira da pouca credibilidade, ainda mais com um tipo de atividade comercial que ainda tenta ganhar espaço.

Conclusão e o futuro

Mesas pagas estão aí para ficar, independente de gostarmos ou não. Surge tanto por jogadores que superestimam a função de narrar ao ponto de não reconhecerem o próprio potencial, quanto por mestres que sentem que tem algo mais a oferecer do que as mesas comuns entre amigos e simpatizantes. O assunto ainda permanece polêmico, e eu já estive no lado dos que achavam um absurdo mesas pagas, e como tantos outros, argumentava usando meus sentimentos e meu romantismo da experiência de jogar RPG entre amigos para comprovar que mesas pagas não tem fundamento e ferem os princípios da diversão do RPG, e ainda tenho pra mim isso as vezes.

Mas o capitalismo infelizmente é isso: tudo pode ser mercadoria e vai ser capitalizado, podendo até comprar sua forma de se divertir coletivamente. Se vai fazer sucesso ou não, depende do interesse e demanda dos consumidores. Já eu, não me sinto carente de mesas. Posso tanto ser mestre como jogador, ou pode ocorrer a eventualidade do hiato na minha vida, da mesma forma não estou desesperado por mesas super produzidas com algum dos maiores “magos da narrativa” e muito menos busco narrativas roteirizadas por Peter Jackson ou Steven Spielberg, nem mesmo me sinto inclinado a começar esse tipo de trabalho apesar de já ter ouvido que teria capacidade. Sou só um consumidor deste hobby que se satisfaz com o que está ao alcance de mim, e como todo produto oferecido que não me interesso, simplesmente ignoro.

3 comentários!

  1. Gostei muito do artigo e gostaria de acrescentar uma contribuição. Uma boa comparação ao ato de contratar um mestre de RPG seria o de contratar um mestre de cerimônias ou pagar um ingresso para o teatro. Ambos casos estamos investindo um dinheiro em entretenimento e temos uma expectativa de que os profissionais envolvidos nos tragam uma experiência marcante.
    • Penso de igual forma. Até vejo diferentes faixas de preço e penso quando vou comer fora. Tem restaurante de tudo que é preço e minha crítica é de quanto foi cobrado pelo prato... como está o sabor, os ingredientes, o ambiente, o serviço etc. Porém, tem aqueles baratos que são verdadeiras obras-primas escondidas e muito outros que possuem preços arrogantes.
  2. Cellbit é muito modinha, ganha dinheiro sem fazer nada realmente bom.

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