ATENÇÃO: Kult Divinity Lost, assim como suas edições anteriores, se trata de um RPG +18 devido seus temas pesados e desvirtuamento de valores. O jogo se trata de uma FICÇÃO e deve ser tratado como tal. Se você é uma pessoa sensível ou sujeita a se sentir influenciada por algum tipo de fala ou tema. Recomendamos que não continue a leitura desta resenha e não leia o livro.
KULT DIVINITY LOST
Autor | Petter Nallo, Robin Liljenberg |
Sistema | Powered by the Apocalypse |
Cenário | Kult |
Publicação | anunciado pela Buró (sem previsão) |
Link | - |
Fernando estava tenso. Depois que descobriu aquelas estranhas mensagens escondidas no código fonte do site da empresa, coisas estranhas estavam acontecendo no trabalho. Talvez tenha sido uma noite mal dormida, mas vez ou outra quando vê seu chefe passando por seu escritório, ele parecia um ser sem pele com uma enorme boca que ia até seu pescoço, vestido num terno chique.
O cenário de terror e horror de RPG no Brasil tem tido uma atenção bem especial. Apesar de ainda serem RPGs de nicho, as editoras têm se esforçado para trazer muitos cenários conhecidos. Chamado de Cthulhu e Vampiro A Máscara são os principais que tentam manter a imagem do horror moldada no desconhecido e no dramático, respectivamente.
Dentro deste tema, a Buró, empresa que comprou a RedBox, anunciou a compra da licença de Kult Divinity Lost, mas devido a agendas comerciais particulares, como o financiamento coletivo de Cultos Inomináveis (outro RPG de terror) e infelizmente pela pandemia do covid-19, os planos de lançamento deste RPG e de outros foram suspendidos indefinidamente. Apesar disso, tive a oportunidade de ter acesso ao livro e já tinha um conhecimento prévio do cenário que, diga-se de passagem, é bem polêmico.
Kult Divinity Lost, semelhante as suas versões anteriores, é um RPG para adultos de horror e terror psicológico com elementos de fantasia moderna, extremamente pesado por sua narrativa. De modo geral, Kult pega a estética descrita por Clive Baker e mistura com elementos da Matrix (devemos ressaltar que a primeira edição de Kult foi lançada em 1991!). Tanto que o mote de todas as edições é “A realidade é uma mentira”, somente mudando recentemente para Divinity Lost (Divindade Perdida) na edição mais recente, mas não alterando seu conceito principal.
A história contada em Kult expõe um mundo onde o Demiurgo, com inveja das outras divindades e desejando ser a única entidade com poder supremo, criou um maquinário de ilusão, selando todas as divindades em cascas de carne chamadas de “humanos”. Para as divindades se manterem presas as suas cascas sem lembranças do que são, foi condicionado a eles princípios morais e éticos que limitavam todas as suas capacidades. Tudo isso é coberto no véu, que divide a humanidade de vários mundos e localidades do universo de Kult. Porém, o Demiurgo inexplicavelmente desaparece, e o maquinário está falhando, o que leva o véu a se rasgar eventualmente, fazendo com que seres de outros mundos surjam e o acesso a esses mundos seja facilitado, ou que entidades interfiram com mais facilidade sobre a vida dos indivíduos, ou mesmo que o personagem perceba que aquele chefe exigente na verdade é um Lictor que quer saber o que ele tem feito.
Aqui os jogadores assumem personagens “despertos”, podendo escolher arquétipos prontos ou criar um do zero dialogando com o mestre. Diferente das edições anteriores, que desconheciam o que havia do outro lado do véu, nesta edição os personagens possuem segredos de envolvimento sobrenatural, estes que vão se desenvolvendo no decorrer das narrativas. Alternativamente, o mestre pode permitir que os jogadores interpretem com personagens “adormecidos”, tornando o desenvolvimento do mistério e seus segredos mais visceral.
Quando falei que o cenário é pesado, não estava brincando. Neste cenário a realidade nada mais é do que uma projeção menos crua e grotesca do que seriam os mundos que as divindades habitavam. Essa realidade, como é mostrada na narrativa, é um plano coordenado de deturpações para que os personagens sigam com suas limitações e não consigam fugir da prisão que impede os reais poderes da sua divindade. Apesar do termo divindade, a beleza e aceitação desta característica em Kult é relativa, e talvez seja renegada e abominada pelo personagem por que já foi totalmente contaminada pelos vícios morais e éticos que o Demiurgo lançou.
Neste RPG, normalmente o humano não consegue reconhecer sua divindade espontaneamente, tanto o é, que para os personagens dos jogadores este reconhecimento do sobrenatural surge através de seu Dark Secret (Segredo Sombrio), o que além do "despertar" provoca um questionamento sobre sua identidade, provocando dilemas e diversas situações, tanto para ele quanto para pessoas próximas ao personagem.
Algumas entidades também podem interferir, manipular ou “ajudar” no despertar de alguns personagens. As vezes o mínimo vislumbre de poder de sua divindade faz um humano incansavelmente tentar chamar a atenção de alguma entidade para alcançar algo de sua busca, e geralmente isto ocorre quando o personagem pratica algum Princípio relacionado a estes seres, ou mesmo se desfazendo desses limitadores sociais, o que em outros termos seria... praticar atos hediondos que não convém serem ditas nesta resenha.
Estes Princípios podem ser motivações, sentimentos ou mesmo estados emocionais que dependendo da intensidade deles, atrai as entidades, Arcontes e Anjos da morte que fazem questão de se mostrar de alguma forma para destruir ainda mais o maquinário. Estas manifestações podem se apresentar na forma de algum falso sentimento, como a honra, glória ou o nacionalismo. Geralmente estes fenômenos e casos hediondos são comumente relacionado a ações de antagonistas da história, como assassinos em série que precisam ser investigados e detidos.
Kult Divinity Lost usa o PbtA (Powered by the Apocalipse), mesmo sistema de Monstro da Semana e Dungeon World. Com um apelo mais narrativo, as rolagens de dados são acionadas a partir de "movimentos" que os personagens fazem, rolando dados quando é conveniente a narrativa. Exemplificando, as rolagens são relativas e dependem do contexto narrativo.
Por exemplo: um personagem atirador está portando um rifle para proteger o aliado durante uma negociação com traficantes, ao invés dele usar Engage in Combat (Engajar em Combate usando Violence, “Violência”) para poder atirar, ele considera as consequências se falhar no disparo durante essa negociação, portanto ele faz esta ação usando Act Under Pressure (Agir Sob Pressão usando Coolness, “Frieza”). O mestre nunca rola os dados.
O que mais chama a atenção neste sistema é a eliminação da burocracia de distribuição de pontos simbólicos para identificar os modificadores. O sistema já fornece os modificadores, e o jogador posiciona eles onde é conveniente para as habilidades que pensa em escolher. Além disso, a resolução dos testes é não binária, não sendo apenas um “você acertou" ou "você errou”, mas tendo como consequências um sucesso completo (+15 na rolagem), sucesso com complicações (14 a 10 na rolagem) e o erro (-9 na rolagem).
Não conheço bem os outros cenários do sistema, mas as descrições para erros e sucessos com complicações em Kult soam como se cada rolagem tivesse consequências pesadas a narrativa, ainda mais considerando que os personagens estão despidos de sua divindade, sendo somente humanos. Reforçando, o mestre não rola dados, as criaturas agem com os jogadores sem sofrerem contratempos de rolagens, deixando a cargo dos jogadores que rolagens fazer para poderem se defender.
Devemos ressaltar que apesar dos temas abordados serem tão recorrentes, o cenário não trata de forma leviana, tanto que ele sugere uma lista de temas que não serão abordados na mesa, a ser discutido e combinado previamente entre os jogadores. Recomenda-se até que se leia com cuidado, por que certas imagens são desconfortáveis para olhos desavisados e provavelmente seja necessário mais de uma explicação para espectadores que desconhecem o conteúdo do livro.
Uma característica muito positiva a ser ressaltada no livro e até mesmo presente em boa parte dos cenários PbtA e outros RPGs mais recentes é a presença mais frequente de artigos femininos nos livros, Kult sempre referencia a pessoa que conduz a narrativa como A Mestra, da mesma forma como a menção de personagens protagonizando cenas quase sempre serem femininas. Muito disso graças ao casal Gunilla Jonsson e Michael Petersén, escritores que trabalharam juntos para escrever um RPG que mesmo soturno, abriu margens para a presença feminina muito antes de se tornar uma pauta de tamanho reconhecimento que é agora, e que mais do que isso, influenciou ideologicamente para que se tornasse mais comum atualmente.
Kult Divinity Lost mostrou-se uma evolução natural ao cenário e principalmente ao sistema. Além do ostracismo, as edições anteriores de Kult foi vítima do que vejo como “sistema d20 modificado dos anos 90”, o que significa que ele é mais complexo do que deveria ou precisa ser. Ao passar para o PbtA, a fluidez do jogo se tornou muito mais dinâmica, e com direito a momentos impressionantes, como foi o caso de meu jornalista em “Island of the Dead” que mesmo fora de forma se tornou guardião de uma espada ancestral de Netzach. Somando isso a um olhar mais responsável sobre os temas abordados, Kult fez sua entrada a uma nova era de RPGs da forma mais merecida possível. Novamente, a única ressalva está sobre a leitura e as imagens do livro e principalmente sobre o conteúdo abordado que deve ser tratado com cuidado e responsabilidade.
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