A alguns meses produzir um artigo sobre RPG para o Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica (ENESEB). Ele veio de uma "epifania" enquanto eu lecionava num seminário de igreja. Percebi que Paranoia possuía muitas referências de vários autores na sociologia, e que poderia a partir deste RPG, exercitar os conceitos deles.
O Artigo já foi defendido, e com a permissão do evento trago a vocês o texto levemente adaptado para o blog. Acredito eu que toda ciência precisa ser compartilhada, principalmente se relacionada com o que nós gostamos tanto, os RPGs. Mas alerto este texto é completamente diferente do que costumo escrever no blog, por isso ele será dividido em partes para melhor compreensão. Dito isso, eu apresento a vocês:
“O Computador é seu Amigo” - Como Paranoia RPG pode nos ajudar com o ensino da sociologia na Educação
Introdução
Sociologia na educação é um campo muito abrangente para a prática da aplicabilidade de conceitos nos mais diversos contextos. Tanto que não é tão complicado buscarmos formas de instrumentalizar o ensino a partir da perspectiva do estudante. Obviamente, o educador deve focar seu ensino na atualidade, de forma que o estudante desenvolva seu senso crítico. Infelizmente, nem sempre o aluno desenvolve esse engajamento direto, já que muitas vezes são minados pela mídia e seus mecanismos de distração. Se por um lado isto é um problema, por outro o sociólogo precisa se reinventar, e voltar-se para estes elementos que se tornaram a realidade do estudante para que assim eles sejam capazes de reconhecer aquilo que os oprime, ou ao menos desenvolver um senso crítico pelo que consomem.
Podemos ver que muitos educadores exploram o campo da ludicidade, tanto no digital como no analógico, como uma forma dos alunos protagonizarem o seu aprendizado não só recebendo os conceitos e reproduzindo-os em provas e deveres de casa, como também aplicando-os em atividades que eles podem se identificar. Entre essas práticas podemos identificar o RPG. Por outro lado, indo além desses ganhos educacionais destes jogos, já presentes em seus livros e cenários, podemos identificar que é possível ir mais além, aproveitando o que as narrativas podem oferecer num contexto crítico e reflexivo, algo muito bem aceitável de ser também aplicado em conjunto a um Jogo de interpretação educacional.
Antes de qualquer coisa, precisamos entender as terminologias. RPG é uma abreviação para Role Playing Game, que numa tradução livre se chama jogo de interpretação de papéis. Neste jogo, com dois ou mais jogadores, um assume o papel do narrador, aquele que conta uma história cheia de desafios e com personagens que ele controla, os demais jogadores assumem personagens criados por eles mesmos, normalmente com planilhas, sendo eles protagonistas destas histórias do narrador. Estes jogos, num âmbito educacional, tem o mérito de desenvolver habilidades inerentes ao estudante, como por exemplo o trabalho em equipe, responsabilidade e consequência de seus atos, sociabilidade, interpretação de texto e formas de narrativa. Todos esses ganhos são indiretos, não necessariamente dependendo de um educador para que o indivíduo seja orientado para desenvolva eles.
Por outro lado, nas mãos de um educador, tem-se uma ferramenta que pode tematizar diversas situações as quais os alunos podem experimentar, desde um evento histórico, até um fenômeno atual para aquele momento. Ao falarmos de seu uso, podemos ir mais a fundo. Considerando o que foi falado anteriormente sobre o desenvolvimento do senso crítico do estudante a partir das mídias que ele consome, o RPG não escapa disso. Podemos considerar que certos jogos desse tipo podem ser uma forte fonte de análise sociológica e podem até ter uma execução mais eficiente que outros presentes no mercado. Isso se dá pelo fato de misturarem suas mecânicas com a narrativa de forma que possa passar alguma mensagem. Esse é o caso de Paranoia.
Paranoia (1995) é um RPG Cyberpunk de comédia criado por Greg Costikyian, Dan Gelber e Eric Goldberg. Cada jogador tem uma família de clones e trabalham como agentes atiradores no Complexo Alfa, uma instalação subterrânea pós-terceira guerra mundial governada por um super computador que detém toda a sabedoria que falta aos personagens dos jogadores. O Computador, também chamado de “Computador Amigo”, é paranoico, e qualquer atividade incomum, mesmo de forma proativa pode ser considerada traição, assim como perguntar demais, tentar acessar certas informações ou entrar em setores de cores mais elevadas que a do personagem também são considerados tipos de traição; Organizações secretas, mesmo as que trabalham em prol do Computador, são consideradas traidoras, tal como ser um mutante. Por ironia, todos os clones do Complexo Alfa são filiados a alguma organização secreta e possuem poderes mutantes. Todos no Complexo têm uma função, e o Computador promete recompensas e subidas de patente caso o agente atirador as cumpra da melhor maneira possível. No entanto, presos a burocracia, nenhum Agente Atirador sobe de patente se não for acusando outros clones do Complexo Alfa de traição e apresentando argumentos fortes para esta afirmativa. Lembre-se: O Computador é seu amigo e ser comunista é uma traição.
Considerando o conteúdo deste jogo, é perceptível que temas da educação e castigo se fazem presentes em sua narrativa. Neste sentido, me proponho a explorar estes elementos apontando potenciais participações de autores da sociologia e da educação, afim de mostrar que seus conceitos podem tornar a partida de RPG lúdica e instrutiva, proporcionando senso crítico ao jogador ao olhar esta mídia, promovendo protagonismo e autonomia ao aluno no momento em que ele tem acesso a estes conceitos.
A educação e o castigo em Paranoia
Paranoia faz uma paródia de uma sociedade totalitária presa a burocracias e hierarquias restritivas. A aplicação destas restrições se faz presentes tanto nas mecânicas de jogo que afetam os jogadores, quanto até mesmo nas explicações do livro, nas fichas dos jogadores e nos formulários, e também nas planilhas extras usadas para determinadas ações dos cidadãos do Complexo Alfa.
Isso afeta a todos, tanto os personagens jogadores quanto os personagens do mestre. A informação é restrita, frases do Computador podem ser inconclusivas, perguntar sobre alguma coisa ou tomar uma atitude que contrarie a cor de seu uniforme pode ser considerado uma traição, dependendo da magnitude da ação. Como dito anteriormente ser um mutante ou participar de uma organização são também um tipo de traição, e todos os cidadão do Complexo Alfa participam de organizações e são mutantes, mesmo que por ironia, todos os cidadãos são clones criados pelo próprio grande Computador.
Contudo, os cidadãos que cumprem com excelência suas tarefas podem receber recompensas. Desde um agradecimento público do Computador Amigo, até mesmo subir seu Nível de Segurança - NS, o que no Complexo Alfa pode ser interpretado como uma patente hierárquica baseada em cores. Um NS elevado significa ter acesso a informações, e a informação é extremamente importante em Paranoia, principalmente por que informações essenciais tendem a ser restritas até para personagens com níveis de segurança baixo, sendo uma traição um personagem com NS inferior saber uma informação que não corresponde a ele.
Segundo Durkheim (2007), temos um fato social na sua mais abrangente discussão. Ele é Generalizante por afetar a todos. Apesar da hierarquização dos níveis de segurança, ter um nível alto não significa exatamente estar isento de suas tarefas para com o Computador e muito menos que incidentes não possam ocorrer, ou que acusações de traição, com fundamento ou não, também não ocorram.
Ele é exterior. Apesar de todos os clones, desde sua criação, serem conscientes das leis a partir de aplicação de informações durante a criação de seus fetos, as leis do complexo alfa existem antes da criação de qualquer vida humana de lá. Deve ser ressaltado que estas informações inseridas ainda permanecem difusas, somente levando o cidadão a saber o que há de mais básico do que é ou não a traição contra o Computador.
A Coercitividade é um elemento fundamental na interpretação desta sociedade totalitária do Complexo Alfa. Durkheim apresenta a coercitividade como algo que envolve aspectos culturais e judiciais, não somente no seu sistema de leis, mas nos modos e práticas, que podem ou não ser aceitáveis, coagindo o indivíduo a ter aceitação, reconhecimento e preservação seu bem estar, mesmo que não esteja de acordo com isso. Em Paranoia, a coercitividade jurídica e cultural se mistura de modo que parece ser uma coisa só. Parte disso se dá por que a sociedade é totalitária, portanto, aspectos da cultura e da lei são instituídos de acordo com o que o Computador julga aceitável ou não. No entanto, entre os cidadãos, a coercitividade cultural se dá pela forma como eles usam as leis para poderem se beneficiar. Qualquer comportamento incomum por parte de um cidadão pode ser considerado algum tipo de traição, acusar uma traição apresentando provas, muitas vezes produzidas ao invés de verdadeiras, é a forma mais rápida de ser promovido para um Nível de Segurança maior, portanto, os cidadãos naturalizam medidas de controle contra outros cidadãos não necessariamente pelo bem-estar dessa sociedade, mas sim por que essa é a forma mais eficiente de elevar-se socialmente. Ao mesmo tempo, o cidadão precisa normatizar abusos e a constante vigilância para não ter repentinas provas contra ele, assim sendo este um dia comum para este clone
Por outro lado, não é por que necessariamente as atitudes do cidadão podem ser consideradas uma traição que ele sofrerá a pena capital da execução, a punição mais comum para os cidadãos do Complexo Alfa. Dependendo da magnitude, ele sofrerá punições diferentes, desde uma mudança pra outro setor ou diminuição de créditos, até mesmo atos disciplinares, como lavagem cerebral ou uso do psicotrópico “Só-Riso”. Não existem prisões no Complexo Alfa, um cidadão excluído é sumariamente exterminado e substituído pelo seu irmão-clone seguinte.
Esta coercitividade nos leva a como Foucault interpreta a disciplina e castigo em Vigiar e Punir (1987). Numa breve leitura, é perceptível que Paranoia dialoga muito com os escritos de Foucault. O autor analisa o processo de transformação da punição na sociedade, e no que ela se transformou. Inicialmente, o suplício, o sofrimento propriamente dito no processo de uma execução, era muito comum para o processo do sofrimento do indivíduo sob pena. Porém, com o tempo, a tortura na busca pelo suplício foi sendo abandonada por vários outros processos. Os corpos passaram a ser politizados. A execução ainda existe, mas não é a pena absoluta, havendo assim outros tipos de castigos para determinados tipos de delitos. Tal como no Complexo Alfa, apesar da execução por traição ser algo extremamente comum, o que explica o porquê de os jogadores terem acesso a tantos personagens, ela não é a única forma de penalizar o indivíduo. Existem outras formas de intervir nestes corpos.
Devemos ressaltar o termo “Corpos Políticos” falado por Foucault. Considerando o regime totalitário do Computador Amigo, o qual ele julga que cada família de clones tem uma função fundamental nessa sociedade, os clones têm compromissos e importância, sendo assim execuções não são decisões arbitrárias. Essa politização é simbólica, e os corpos servem para dar exemplo sobre o poder e controle deste regime. Sendo assim, punições como rebaixamento, humilhação pública, atitudes disciplinares preventivas e até lavagem cerebral são formas de mostrar a força que tem este regime de controle e totalitarismo representado nos corpos dos cidadãos do Complexo Alfa. Ressalta-se o termo clone, despersonalizando ainda mais a identidade do cidadão, transformando ainda mais num produto político daquela sociedade.
Voltando ao paralelo com Durkheim, percebemos como a coerção afeta o cidadão do Complexo Alfa. Aqui, o processo educacional não acontece em redes educacionais ou cadeias de ensino, mas sim a partir de inserção de informações enquanto ele está no processo de criação do clone. Ele sabe em que setor vai trabalhar e o que precisa fazer lá, o sistema de Níveis de Segurança e para quem ele deve servir. Por outro lado, apesar do clone já ter nascido com consciência de suas funções, muitas informações, como falado antes, são completamente restritivas a Níveis de Segurança elevados, mesmo que sejam informações necessárias para a resolução de seus problemas ou algo que salve a sua vida. Para se ter uma ideia, os cidadãos do Complexo Alfa sabem que estão em confinamento numa instalação tecnológica, tanto que eventualmente precisam fazer atividades fora dela, mas eles não têm absolutamente nenhum conhecimento sobre o que existe exatamente lá fora. Algumas sociedades secretas que tiveram acesso a imagens do mundo a fora teorizam de forma messiânica sobre tais imagens, porém nada foi exato. Aqui é perceptivo que existe um monopólio parcialmente velado da informação no Complexo Alfa. Somente o essencial está sob acesso para cada NS, embora esse essencial seja absolutamente questionável.
Podemos perceber que a distribuição de informação por meio de uma hierarquia tem um forte paralelo sobre a institucionalização do saber, citado por Michel Foucault (1987). A informação/saber é concedida baseado no que é entendido como eficiente para a instituição, também baseando-se no desempenho do indivíduo que é recompensado com elevação na hierarquia, para todos os efeitos, a informação é restrita a forma de como aquele indivíduo vai influenciar e desempenhar seu papel na sociedade. Nas escolas é um pouco diferente, os instrutores sempre mantém sua posição hierárquica como autoridades no saber, enquanto que os estudantes não só se elevam numa hierarquia estruturada no acesso ao saber, como todo o seu conhecimento é encorajado a ser reproduzido socialmente como uma forma de reforçar a estrutura desta sociedade, na escola a elevação hierárquica não torna-se um instrumento de poder para subjugar estudantes em séries inferiores, na verdade serve pra identificar que aquele estudante está capacitado e hábil para novos aprendizados. Na sociedade do Complexo Alfa, existe uma mistura de uma hierarquia militar e uma instituição escolar, no entanto o cidadão está limitado na forma como reproduz esta informação, somente podendo compartilha-la com cidadãos com seu mesmo NS ou superior, sendo uma forma de traição reproduzir para os NS inferiores.
Considerando este paralelo entre a capacidade do indivíduo receber mais informações e tais informações poderem somente serem reproduzidas a grupos restritos, o Computador espera que o indivíduo normalmente seja limitado as funções que ele é condicionado, apesar de que, o acesso a informações é limitado e parcialmente fragmentado, mesmo que seja para algo direcionado a função deste indivíduo.
Diz-se parcial por que são informações necessárias que indiretamente o cidadão deveria ter acesso ou saber, mas não as tem ou sabe. Se buscar sabe-las, pode estar sob suspeita de estar cometendo algum crime de traição, da mesma forma se tentar reproduzir esse entendimento caso tenha conseguido de alguma outra forma se não através do Computador. Não se tem uma explicação exata pra esse regime de informação do Computador, porém da mesma forma que ter acesso a certas informações é um ato de traição, saber que alguém de baixo Nível de Segurança tem alguma informação imprópria é de grande valor, pois denúncias podem garantir recompensas e promoções, fazendo assim com que os cidadãos estejam em constante vigilância entre si, mesmo que os próprios denunciantes também possam ter conhecimentos além do seu Nível de Segurança. Isso nos mostra que a coercitividade é uma ação realizada não só pelas autoridades do Complexo Alfa, mas também sob total supervisão dos cidadãos que estão em busca de sucesso e aprovação pelo grande Computador.
Aqui encerramos a primeira parte da apresentação do artigo, fiquem de ligados para a continuação desta reflexão acerca de Paranoia!
Daniel Bandeira em "Cartas na Mesa – As Famigeradas Mesas Pagas"
Mike Wevanne em "Mas Peraí… O que é Wiseguys - The Savage Guide to Organized Crime?"
Marcus Mauro em "Adaptação - Hotline Miami • Savage Worlds"
Elfowo em "Adaptação - Hotline Miami • Savage Worlds"