Inaugurando uma nova sessão do blog, as Cartas na mesa são um espaço pros nossos colaboradores falarem de RPG e boardgames de uma forma mais séria, seja relacionando essas atividades à sua história de vida, seu trabalho, estudos, seja levantando discussões em favor do crescimento dos hobbies com a sociedade, desabafos, etc.
Nesta primeira postagem, o nosso professor de Sociologia, Marcus Mauro, fala sobre os cuidados que o mestre deve ter na hora de escolher as abordagens presentes nas sessões de RPG com o seu público, os jogadores.
Não é muito comum nós tratarmos de assuntos de política social no RPG, seja dentro do jogo ou fora interagindo com os jogadores. Na verdade, ele costuma ser abominado, com o receio de ser algo que acabasse com a diversão do jogo. No entanto, a política está presente em todas as nossas ações, incluindo o RPG, e um conceito é constante nesse jogo: O Contrato Social.
Conceito cunhado por Thomas Hobbes, o Contrato Social seria um contrato velado entre o ser Humano e o Estado afim de garantir sua sobrevivência. Atualmente esse conceito tende a ser usado de forma mais abrangente e o Acordo social velado se faz presente em várias relações, e como falamos de RPG e boardgame por aqui, é muito natural que esse tipo de acontecimento ocorra.
A não muito tempo circulou pela internet uma espécie de Lista de Consentimento no RPG. Nele se apresentava vários tipos de coisas que jogadores, e possivelmente o mestre, não gostaria que estivesse presente nos seus jogos. Ia do mais pessoal, como medo de aranhas, aos mais sérios, como o estupro. A recepção foi mista, as queixas gerais eram sobre alegarem que a lista fosse algo muito impositivo, e também não demorou muito para associarem a lista a termos como “politicamente correto” (que vamos abordar mais a frente) e outros termos do tipo, que julgam ser para sanitizar um ambiente que não precisa.
Não devemos negar: o RPG está com um olhar mais maduro, principalmente os de tema de terror e fantasia sombria. Afinal, se a violência é algo tão comum à existência desse jogo, não seria impossível viabilizar a existência de tantos outros temas. Nos anos 1990, por exemplo, tivemos um estouro de cenários e RPGs que tinham uma abordagem madura (mas nem tanto) e experimental:
- Kult mostrava um cenário que era um misto de Hellraiser e Matrix (muito antes de seu lançamento), sugeria que os seres humanos na verdade eram divindades presas em corpos limitados físico e moralmente, e que para reconhecer sua divindade e olhar o mundo como realmente é, precisava destruir suas amarras limitadoras, o que levava a certos extremos e vazões, justificativas para determinadas situações extremas;
- Tormenta tinha uma raça de minotauros escravagistas, onde não existem fêmeas. Os textos sugeriam fortemente que a existência deles era fruto de estupro de escravas sexuais. Uma raça que coexistia com outras sem demonstrar um efetivo antagonismo e sendo plenamente jogável para os jogadores;
- Em Deadlands, cenário de faroeste estranho de Shane Hensley, os confederados foram vencedores e se apresentando como antagonistas constantes, junto a isso a escravidão ainda era comum. No entanto, o autor exaustivamente tentou ameniza-los até mesmo tirando o caráter escravista que este grupo defendia, fato esse que foi fundamental na história americana, descontextualizando o caráter do grupo político: seria o mesmo que tirar a eugenia presente no nazismo somente para amenizar um dos lados da história.
Quando narramos rpg, devemos considerar duas coisas muito importantes: 1) a que diz respeito a questão do contrato social e também sobre a responsabilidade moral do indivíduo quanto ao que vai abordar. E 2) a potencial leviandade de passar por esses temas sem nenhum tipo de conhecimento e/ou sensibilidade. Não é por que certos jogos mostram cenários soturnos, aterradores e até realistas, que necessariamente absolutamente tudo isso precisa ser abordado, independente da maturidade do jogador para determinados temas. Muitas vezes a classificação indicativa do jogo não é o suficiente.
Não é muito incomum ouvir relatos sombrios e desagradáveis de jogadores que presenciaram cenas que ao invés de extrair aquela tensão e desgosto fantasioso, acabou por trazer à tona sentimentos mais reais do que deveriam existir, ou mesmo relatos de situações hediondas que os jogadores praticaram e lidaram como uma mera brincadeira, o que também pode levar o mestre a tomar a iniciativa de reconhecer se também não há toxicidade presente nos jogadores em mesa.
O mestre e os jogadores, devem ter muita noção de como tratar destes assuntos, afinal é muito comum não sabermos do que é 100% da vida de um amigo, parente, namorada(o)... Imagine de uma pessoa que vez ou outra joga com a gente? Essas pessoas podem ter vivido coisas que não sabemos, coisas que ela não espera que em sua diversão tenha que experimentar de novo. A diversão deve proporcionar uma segurança pessoal para o jogador, portanto limites devem ser considerados.
Não nego, já cometi meus erros como mestre ao abordar determinados temas, seja por ignorância, ou seja, por que eu estava muito envolvido no tema, mas eventualmente fui chamado a atenção e certos assuntos passaram a ser tratados com mais cuidado ou mesmo eliminados da mesa. Afinal, o RPG é uma diversão social, e independe de vontades particulares de um mestre ou jogador que tão somente.
Isso nos leva a um dos pontos particulares em relação a exclusão que alguns jogadores podem sofrer. Voltando novamente à Lista de consentimento, muitos RPGistas podem acabar interpretando de forma hostil a necessidade de uma lista dessas, afirmando que por estar narrando um sistema ou cenário que abordem temas polêmicos, o jogador deve estar ciente do que vai lidar, mas isso reforça uma grande exclusão que o RPG não propõe, como se o mestre rigorosamente fosse abordar todos os temas presentes no jogo, sendo que nem ele mesmo tem essas condições, seja por que não tem disposição, ou seja por que ele não tenha conhecimento.
Se isso se aplica ao mestre, por que o jogador não tem esse direito? O RPG não é um hobby de exclusão, mas sim algo que inclua o máximo de pessoas que puder.
O mestre não tem obrigação de agradar a todos os jogadores, mas ele tem que ter maturidade para perceber que eventualmente ele vai, por acidente, abordar algo que pode fazer muito mal pra um jogador, algo que um aviso prévio não o tenha preparado pra isso. Como cada pessoa tem uma forma de lidar com algo que pode ter acontecido na vida dela, uma delas, pode ser o de não falar sobre aquilo que não está provocando mal a ela. Algo que o mestre deve estar preparado, seja num improviso, pulando a cena que está sendo descrita, ou mesmo encerrando a mesa, caso seja a melhor alternativa.
Vale ressaltar que falamos efetivamente do dever do mestre por que ele, dentro do contrato social, é que deve executar de forma rigorosa o que foi acordado. Obviamente os jogadores devem estar cientes disso, no entanto o mestre não deve contar sempre com esse tipo de compromisso com todos os jogadores, até por que ele é também quem decide quem deve participar ou não da mesa.
Atualmente, o tratamento das editores e autores sobre seus materiais de publicação está sendo mais cuidadoso e sensível.
Shadow of The Demon Lord, um cenário tão tenebroso e grotesco, reserva um espaço para, em poucas palavras, reconhecer que se deve ter cuidado para abordar certos assuntos, e não só isso como reforça que o mestre deve se atentar a certos comportamentos de rejeição que um jogador pode ter para ele poder tomar a melhor decisão sobre como lidar com aquele momento.
O mesmo se fala para Kult Divinity Lost que também mostra esse comprometimento sobre o conteúdo do próprio livro e também sugere uma lista de temas que não poderão entrar na mesa. Infelizmente, nem sempre podemos contar somente com a responsabilidade moral que os autores têm sobre seus jogos. Muitas vezes os jogadores defendem que o jogo tem que ser jogado usando todos os temas possíveis. Não é muito impossível que esses jogadores não tenham lido estas partes dos livros e compreendido o poder que tem em suas ações imaginativas, novamente nos voltando a situação de exclusão velada ou descarada que pode existir nas mesas de RPG.
Talvez a lista de consentimento possa soar como algo metódico e chato, mas quantos de nós já não perdemos horas fazendo fichas de RPG como queremos? Talvez perder alguns minutos tentando entender quem está do seu lado possa render bons momentos no RPG e quem sabe uma amizade duradoura. Se não for interesse do mestre o uso desse tipo de ficha, ele pode usar da moda antiga e trazer a “Mesa 0”, que não só define o tipo de RPG que todos pretendem jogar, os personagens que vão ser vividos, como também pode ser um momento de conversa, particular ou não, para conhecer as demandas de cada jogador.
A Ficha de consentimento pode ser usada talvez num evento de RPG ou mesmo para aquele jogador novato que não tenha aparecido na Mesa 0. Ainda sim, o mestre precisa estar preparado, ter noção de para quem vai narrar e fazer algumas perguntas para a própria consciência do tipo: Devo fazer isso? No que vai acarretar essa situação? Meus jogadores estão dispostos a isso? Eu me sinto bem com o que vou descrever? Esta cena é realmente é interessante para a narrativa?
Mestres erram. A questão é que ele precisa aprender com seus erros, e uma das características mais importantes que eles precisam ter é a responsabilidade e a maturidade. O rigor deve ser utilizado somente em defesa dos seus jogadores, não pare excluí-los. Afinal, é muito melhor perder uma cena super elaborada com aquele momento desagradável do que um potencial bom jogador que sempre estará disposto a jogar com você quando tiver novas sessões.
Para os mestre e jogadores interessados, deixamos aqui um link para um tipo de checklist de Consentimento totalmente traduzido e editável. Excelente para eventos e encontros com jogadores novatos ou recém recrutados para partidas de RPG.
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