Uma coisa que falamos bastante sobre o ato de interpretar no RPG é sobre caracterização do personagem. Como você descreve seu personagem, que tipo de roupa usa, que imagem os outros jogadores vão ter desse personagem. Essa é a base de grande parte das apresentações dos personagens no RPG.
Claro, você pode imprimir uma imagem e mostrar aos jogadores, e esse tipo de apresentação se tornou muito mais comum com a popularização das mesas online. Por outro lado, esse tipo de abordagem pode ser um tanto simples e custosa para o mestre se utilizado numa partida presencial, dado o fato dele ter que administrar N personagens numa mesa.
Sendo assim, fica mais acessível e “barato” descrever o personagem de maneira verbal para o grupo, exercitando a interpretação, nesse caso, da fala de um interlocutor e a imaginação do ouvinte. Porém, muitas vezes aquele que caracteriza seu personagem não imagina qual a real imagem que o ouvinte construiu sobre o personagem descrito, e refletir sobre isso é bem interessante.
Isso nos leva ao anime Dungeon Meshi, uma das novas levas de animações da Netflix e que me deixou com o pé atrás no primeiro momento e muito satisfeito na sua continuidade. Eu assisti com certo receio porque imaginava que o anime iria recair num mundo que parecesse com um MMORpg, como grande parte dos animes mais populares. mas para minha surpresa ele parece sim RPG, mas um OSR, um tipo de RPG que já abordei a muito tempo atrás em outro artigo. O tema inicial do anime é a alimentação e bem estar do grupo para esse tipo de aventura em masmorras, algo que o grupo de Laios descobriu que é importante depois de fracassarem na última entrada que nesta masmorra. Apesar do anime ter como pano de fundo a comida, o grupo tem um objetivo principal que é complementado com vários momentos que realmente parecem de uma aventura de RPG, e numa dessas situações absurdas o grupo se depara com uma criatura Metamorfa.
Em determinado momento em que os aventureiros precisam passar por uma nevasca, eles acabam se abrigando em outra parte da masmorra para poderem ter visibilidade. Ao chegarem se deparam com mais três versões de cada um, que possuem diferenças extremas ou sutis de um para o outro. Por exemplo: Laios, o guerreiro, como um gigante ou Marcille, a maga, com uma versão que pareceu que fez harmonização facial. O próprio Laios explica que eles estão sendo “atacados” por um Metamorfo e essas duplicatas dele nada mais são do que a forma como os outros colegas do grupo veem seus parceiros. O que também leva o espectador a pensar quem vê quem daquela forma.
Essa situação me fez lembrar algo semelhante em minha campanha de Shadow of the Demon Lord. Numa das sessões eu apresentei um dos vilões recorrentes que o grupo precisaria lidar, um pirata que usava uma capa de chuva daquelas de baleeiro, dois revólveres, uma barba desgrenhada e olhos escuros com pupilas esverdeadas cor esmeralda. Depois de muitas sessões, um dos jogadores perguntou se não daria pra destruir a perna de pau dele, enquanto outro falava de um tapa olho. Isso causou uma confusão que me fez perguntar como eles estavam vendo o vilão que eu criei, aí um deles falou: “ah, é que do jeito que tu descreveu o vilão ele parecia aquele pirata gordo do Planeta do Tesouro”. Ai eu comentei que não tinha descrito ele assim, mas que dois membros do grupo acabaram se afeiçoando aquela imagem que criaram do meu vilão.
Apesar dessa situação não ter causado nenhum problema na narrativa, esse evento, somado a cena de Dungeon Meshi me levou a pensar que na verdade esse tipo de disparidade de caracterização é mais comum do que se imagina. E o mangá que o anime adapta até explica um pouco melhor por que as duplicatas pareciam tão diferentes e por que alguns membros do grupo até mesmo achavam que a imagem da duplicata parecia mais correta que a do colega verdadeiro. Num dos capítulos do mangá, é explicado que algumas ancestralidades perderam contato entre si, e a única forma de reconhecer estes seres era tão somente pelos relatos de seus próprios ancestrais e familiares. Essas descrições acabavam por moldar uma imagem idealizada daquele personagem, e por essa razão que Senshi, o anão cozinheiro parecia um galã para Chilchuck, o Halfling do grupo.
Inegavelmente qualquer descrição ou imagem que criamos de outra pessoa é carregado de uma imagem idealizada que nós criamos, e isso é um referencial das experiências que temos, tanto que esse também é um motivo de situações em que contamos sobre algo empolgante pra alguém, mas para a outra pessoa pode não ser grande coisa por que existem cargas referenciais de cultura e convívio que fazem aquela pessoa ver de uma forma diferente as coisas.
Para objetos, gostos e até outros elementos baseados em gostos pessoais é bem mais fácil de reconhecer referenciais pessoais. No entanto, para o indivíduo isso é algo bem mais complexo. Está tudo bem o fato das pessoas terem uma imagem diferente de como você realmente se imagina, tanto o é que muitas vezes não referenciamos a pessoa pela sua aparência, mas sim pela sua personalidade e gestos. Algo que novamente o anime acerta em abordar no episódio.
Laios não é um guerreiro muito inteligente, portanto suas referências visuais de características dos amigos são limitadas ao que ele se apegou visualmente, como o cachecol do Chilchuck ou a forma como a Marcille está amarrando o cabelo, diferente dos amigos que construíram uma interpretação das características dos amigos de forma muito mais distinta. Por conta dessa problemática de Laios, ele teve que se voltar aos detalhes de convívio dos amigos, as formas como eles se comportam no lugar que estão, a ideologia de cada amigo ou mesmo o que eles comeram nos dias anteriores. Assim ele conseguia formar uma identidade verdadeira sobre o resto do grupo.
Caracterização de personagens é um elemento fundamental da mesa de RPG, tanto que até já vi cursos de como caracterizar o personagem, para torná-lo mais especial para as suas mesas, mas as vezes nunca nos damos conta dos detalhes pormenores da experiência colaborativa do RPG, como o caso das possíveis diferenças da forma como cada jogador imagina as descrições de um personagem.
É impossível nós transmitirmos 100% do que imaginamos pro personagem que não sejam as características que achamos mais importantes, mas uma forma de tornar essa caracterização mais interessante e efetiva fica em como o personagem interage com seu próprio corpo, se ele tem uma barba longa, pode mexê-la, se ela é uma criança, fazê-la se distrair com coisas mais banais de sua infância, e assim por diante. Porém, independente de como se fundamenta essa caracterização, é sempre divertido quando o grupo compartilha a imagem que cada jogador tem sobre determinado personagem.
Daniel Bandeira em "Cartas na Mesa – As Famigeradas Mesas Pagas"
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