DADOS ACADÊMICOS – NO QUE PARANOIA RPG PODE NOS AJUDAR NA SOCIOLOGIA? PARTE 3

Finalmente, depois de muitos atrasos da vida profissional e acadêmica, temos a parte final do artigo sobre Paranóia e sua contribuição para o estudo da sociologia.

Para quem está perdido, acompanhem desde o começo por estes links:

O conhecimento para o oprimido em Paranoia.

Como já foi descrito, o Complexo Alfa é uma sociedade em constante vigilância, não só do Computador, como também de seus próprio habitantes. E como percebemos, esta vigilância participativa é encorajada pelo Computador por ser uma medida muito mais rápida de subida de Nível de Segurança. Sob os dizeres de Foucalt (1987), de que “Conhecimento é poder”, e vice-versa, vemos que muito além de gozar dos direitos de oprimir clones de Níveis menores, o conhecimento condicionado é valioso e necessário para a sobrevivência nesta sociedade confusa e destrutiva. Além disso, o Computador, acima dos clone, detém o poder e dita os conhecimentos que além de serem estritamente condicionados de acordo com o Nível do clone, também determina e produz qual o conhecimento adequado para aquela sociedade, podendo ou não ser crível para ela.

Durkheim (2007), por outro lado, dá um olhar um pouco mais discreto ao afirmar que a coercitividade contida na educação e disciplina, ocorre de forma que o indivíduo não perceba que está sob algum controle, afinal o conhecimento que ele possui seria uma espécie adestramento físico e mental para se adequar a sociedade, de outra forma se fugisse a isso, ele poderia ser socialmente repreendido, e em instâncias criminais, pode também ser preso. Nesta ótica de Durkheim, vemos como a vigilância e repreensão social se mistura, ja que no Complexo Alfa, todo comportamento que destoe do que o clone foi condicionado pode ser considerado um tipo de traição, e sabendo as recompensas que podem ser dadas para os denunciantes, torna-se uma prática mais do que bem vinda para a realidade dos clones.

Isso nos leva ao olhar de Paulo Freire e sua pedagogia do oprimido. Segundo Freire (1987), a educação precisa ser libertadora. O autor fala isso tanto no sentido pedagógico quanto ideológico. Libertador no significado radical da palavra, aquilo que transcende, que vai além do conhecimento já estabelecido, como uma espécie de processo evolutivo para sociedade e para o indivíduo. Da mesma forma, sua libertação está no sentido de como ela pode ser uma formadora intelectual para a pessoa no seu propósito esclarecedor da ignorância. Portanto, um indivíduo só seria capaz de alcançar sua liberdade se ele tiver capacidade e condições de reconhecer aquilo que pode estar o impedindo de se libertar. Uma pessoa sem conhecimento, é uma pessoa socialmente excluída, sob risco do ostracismo, e é diretamente relacionado a sua sobrevivência social e física, obtendo esse conhecimento, o indivíduo seria capaz de escapar de uma condição aprisionante, reconhecendo-a e buscando formas de se libertar, fazendo um pequeno paralelo sobre o Panopticon de Foucalt.

No entanto, no complexo Alfa isso não é tão simples, no sentido ideológico Freire (1987) já aborda bem no início a forma como a educação e disciplina pode ser tratada de forma hierarquizada. Bem no início de seu trabalho, o autor exemplifica esta situação ao narrar uma situação em que passava uma capacitação para damas, ou mesmo repassando modelos de educação libertadora, o qual os seus educandos, mostravam-se resistentes e receosos sobre a execução deste métodos. Para ser mais específico, falando que eles não tinha direito ou condições de terem acesso a este conhecimento, ou de julgar este conhecimento perigoso.

Não estamos falando aqui de um conhecimento que só poderia ser acessado e entendido por tipos específicos de profissionais ou de algo que exigisse uma especialização prévia pra poder acessar esse conhecimento, falamos aqui de receios que os participantes possuíam sobre estes conceitos libertadores considerando-os perigosos, formas de pensar que ameaçam o que já foi estabelecido no pensar e que rege o caminhar da sociedade, além de também poderem ser conhecimentos hierarquizados, seja por uma hierarquia baseada no gênero, na idade ou numa posição social. Em várias sociedade, incluindo a nossa, ainda encaramos restrições de conhecimento, como se ele fosse estritamente baseado em algo que somos, não necessariamente por que não passamos por um processo de aprendizado para podermos chegar nele. Vale ressaltar que estamos falando de participantes que se encontram socialmente marginalizados na sociedade, pessoas oprimidas, e que apesar de naquele momento terem a oportunidade de obterem algum conhecimento que transcenda a sua condição social, preferem evita-lo.

Tanto em momentos históricos ou mesmo em sociedades modernas, essa forma de lidar com a concessão do conhecimento permanece, e mesmo que mudanças ocorram e a forma de olhar o conhecimento e aprendizado mude, muitas pessoas, por sua criação, nutrem estes receios, assim sendo também responsáveis de alguma forma com uma censura do conhecimento. Muito disso se dá pelo tipo de relacionamento que o indivíduo tem com a sociedade. Se trata da crença de que mantendo esses modelos estabelecidos pela sociedade surja a oportunidade deste indivíduo ser reconhecido e eventualmente eleve sua posição, assim tendo plenos direitos de acesso a esse conhecimento até então proibido. Trata-se do quão integrado este indivíduo oprimido se encontra a esta sociedade opressora.

Desde o início deste artigo percebemos que a sociedade do Complexo Alfa se trata disso. A diferença é de como esta temática transcende a questão dos clones para com os jogadores de Paranoia. Isso também, finalmente nos leva a entender o por que, diferente de outros jogos de mesa, o Nível em Paranoia tem um significado mais narrativo do que mecânico. O Nivel de Segurança reflete ao quanto o Computador confia naquele clone, o quanto ele se mostrou responsável para com o sistema do Complexo Alfa, preservando-o e sendo proativo em eliminar possíveis traidores da estabilidade desta sociedade, quanto Maior o Nível, maior acesso a conhecimento e outras área da instalação do Complexo Alfa o clone tem, além de também condicionar aqueles em níveis inferiores a uma subordinação que reproduz o modelo já estabelecido no Complexo Alfa, visto na figura 07. A frase de Freire “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” não só se aplica perfeitamente a narrativa de paranoia como também faz os personagens a botarem em prática, com a adição a crítica da falência da meritocracia.

A Sociedade do Complexo Alfa faz uma pequena alegoria sobre fracasso da meritocracia quando se trata de ofertar aos clones a chance de subir seu Nível de Segurança a partir das atividades ligadas as suas funções. Isso se dá por que, independentemente do tipo de trabalho bem sucedido que o clone faça, dentro de todos os parâmetros rigorosos do Computador, o próprio Paranoia (1995) nos fala que é impossível ser recompensado com uma subida de Nível, muitas vezes as recompensas serão mais créditos, futuros equipamentos melhores, visitas a instalações recreativas ou mesmo um agradecimento público, prêmios que não se provam justos pelo tipo de tarefa realizada no Complexo Alfa. Por outro lado, denúncias por traição, com eventuais comprovações, podem garantir avanços de Nível imediatos, sem nenhuma limitação burocrática, e muitas vezes, sem cerimônias.

Além disso, falhar na sua função não é uma alternativa, o clone sofrerá sanções e penalizações disciplinares, como cortes de créditos, lavagem cerebral, recondicionamento corporal com uso de aparelhos de tortura, como referenciado na figura 08, ou, na pior das hipóteses, o extermínio do clone que fracassou. Devido a esta situação, é muito mais comum os jogadores que controlam clones fazerem suas tarefas à risca enquanto tentam sabotar os outros clones, ou mesmo buscar ou forjar traições para poder elevar seu Nível de Segurança às custas de outros clones, principalmente clones controlados pelos outros jogadores. Mostrando que a busca por conhecimento e poder nesta sociedade muitas vezes se baseia em corrupção do que exatamente na honra do trabalho, como o Computador Amigo promove.

Conclusão – Uma sugestão de como usar Paranoia

Neste artigo, tive a intenção de mostrar o quanto o conteúdo narrativo de um RPG pode auxiliar para dialogarmos sobre assuntos estudantis dentro e fora da sala de aula. Estes jogos já nos apresentam muitos ganhos pedagógicos e sociais para o estudante como cooperação, consequência nas escolhas e empoderamento no indivíduo. Porém, muitas vezes acaba sendo deixando de lado a história e a narrativa de muitos RPGs abordados. A intenção aqui não é pôr em demérito os trabalhos ou as formas como são aplicadas estas atividades lúdicas em sala de aula, mas sim mostrar que muitos destes jogos podem agregar sociologicamente muito mais quando abordado os seus conteúdos. E como podemos ver, Paranoia nos apresenta muitos elementos da sociedade que nos auxiliam para refletirmos acerca de diversos assuntos da sociologia e da educação, além destes temas podemos ver outros assuntos como, por exemplo, críticas explícitas a burocracia, que podemos ver nas próprias planilhas que mais parecem formulários ao invés de registros para o jogador, ou mesmo os temores do fantasma do comunismo, que praticamente em todas as páginas de Paranoia existe alguma citação, porém são questões que fogem um pouco de nosso escopo, e tornaria este trabalho ainda maior.

Com tudo o que pudemos abordar, sob um olhar Durkheimiano a sociedade em Paranoia sofre de uma forte coercitividade, dentro de um processo colaborador entre o sistema e os próprios habitantes que, de um lado mantinham-se por um rigor comportamental em suas funções e um olhar vigilante, sob a espera de uma recompensa, misturando sanções morais e jurídicas. Além disso, notamos como a educação no Complexo Alfa, num olhar sociológico Durkhemiano, era tanto sofisticada quanto reprodutora de velhos costumes de uma sociedade anterior a do Complexo Alfa, refletindo-se assim a reprodução da tradição em sociedades sem Estado, como citado por Durkheim, onde aqui surpresa se dá pela possibilidade identificar alguma forma de Estado na sociedade do Complexo Alfa. Sob a leitura de Foucault, vemos como ele complementa o olha de Durkheim falando de uma sociedade em vigilância, referenciando o Panopticon, onde os encarcerados também são responsáveis pela funcionalidade desta prisão afim de serem capazes de se elevarem e de alguma forma possuírem mais conhecimento, mas que ao final nunca serão capazes de terem o mesmo conhecimento englobante de seus principais vigias. Por fim pudemos concluir a reflexão com Paulo Freire, mostrando a posição de oprimido dos clones na sociedade do Complexo Alfa, onde eles sempre desejarão fazer parte de algo na sociedade sob um sonho de poderes fazer parte de classes mais altas, ainda que nunca desenvolvam a perspectiva de ter um conhecimento além do fornecido pelo Computador.

Ao fim, fica a reflexão sobre que tipo de desfecho Paranoia pretende possuir, quais as suas intenções, e se esta sociedade pode ter um “final feliz” ou ao menos empoderar os jogadores para poder mudar algo, afinal o que fazemos com esse aprendizado se não podemos mudar algo a partir dele? Ao menos na segunda edição de Paranoia (1995) houveram alguns suplementos abordando realidades alternativas a qual o Computador teria sido destruído ou só estaria dominando uma parte do Complexo Alfa, mas ainda sim eliminava parte da dinâmica narrativa que promoveria a abordagem dos temas, principalmente por que sem o Computador como um ser onipotente, eliminaria qualquer motivação dos jogadores trabalharem contra si para poderem ser promovidos mais rápido. Devemos ressaltar que esta competitividade só será possível de ocorrer se os jogadores compreenderem a natureza do que este jogo pretende proporcionar.

Paranoia pode ser utilizado como um exercício de estudo dirigido, para um grupo pequeno de alunos, extraindo trechos do cenário a fim de desconstruí-lo na ótica dos autores já citados, ou mesmo alguns dos outros temas que a pouco exemplificamos. A intenção aqui seria ao fim da prática do jogo coletar todos os elementos que poderiam ser analisados no estudo, elementos esses que poderiam previamente já ter sido abordado em sala de aula. Com os jogadores como protagonistas destas ações, eles seriam responsáveis por descontruir estas ações no jogo, reprisando os conceitos dos autores e usando a aplicabilidade dos mesmos para refletir sobre a sociedade.

Este RPG é mais um exemplo de como a aplicabilidade do RPG na educação é muito bem vinda, porém além do apoio pedagógico, oferece muitos exemplos conceituais para a sociologia. Existem muitos outros jogos, geralmente com temática mais madura, que abordam temas sociais de forma que seria possível promover uma provável aplicabilidade útil para a sociologia. Chamado de Cthulhu, por exemplo fala dos terrores e tabus do século 19 e 20, o RPG indie Retropunk sugerem fortes abordagens temáticas sobre ambientalismo e a falência do capitalismo, enquanto Kult atualmente tem abordado muito temas do chamado de “Horror Social”, em que o terror e o sobrenatural se envolve com temáticas sociais, como os filmes Corra!, de Jordan Peele e Hereditário, de Ari Aster. Vendo estes paralelos, é possível que o professor possa reconhecer na mídia do RPG estas temáticas da sociologia, assim sendo uma outra alternativa de diálogo entre os alunos, transformando-os participantes no uso empírico dos conceitos dos autores protagonistas.

Referências Bibliográficas

DURKHEIM, E. Regras do Método Sociológico. 3º edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 165p.

DURKHEIM, E. Educação e Sociologia. Petrópolis/RJ: Vozes, 2011. 120p.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: O Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 288p.

PAULO, F. Pedagogia do Oprimido. 17 º edição. Rio de Janeiro: Paz na Terra, 1987. 256p

Costikyan, G; Rolston, K; Goldberg, E. Paranoia. São Paulo: Devir, 1995. 150p

Costikyan, G; Rolston, K; Goldberg, E. Paranoia XP – Service Pack One. Swindon, England: Moongose Publising, 2004. 258p

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