Para quem não está acompanhando desde o começo esta série de artigos, aqui estou apresentando um artigo publicado na ENESEB, adaptado para o blog. A primeira parte vocês podem acompanhar neste Link : https://cabanadoelfo.com.br/dados-academicos-no-que-paranoia-rpg-pode-nos-ajudar-na-sociologia-parte-1/
Nesta segunda parte falaremos sobre como se desenvolve a educação de forma confusa e irônica do Complexo Alfa, e sua familiaridade com o Panopticon retratado por Michel Foucault.
Complexo Alfa e a Sociedade Moderna
Pode soar estranho pensarmos que todo o Complexo Alfa está sendo administrado por uma inteligência artificial que apresenta defeitos e comportamento autoritário, e que, de alguma forma, não faz sentido relacionarmos que a concessão de saber vindo de uma máquina não pode ser tratado como uma forma de educação. Porém, segundo Durkheim (2011) cada sociedade tem uma forma de abordar e oferecer conhecimento, fazendo uso de ferramentas e recursos que estão ao alcance, seja pelas suas limitações ou pelo que julgam ser eficiente ou conveniente para que o conhecimento esteja à disposição da sociedade. Ainda que o Complexo Alfa seja controlado por um Computador, ele ainda permanece sendo uma construção de seres humanos, e, diga-se de passagem, uma geração anterior tomada por diversos temores que vindos das consequências da 3º guerra mundial descrita no cenário do RPG, que seria o principal motivo da construção desta fortaleza subterrânea.
Muito além desta questão narrativa e continuando a reflexão de Durkheim acerca da educação e sociologia, o autor fala que em algumas sociedades sem a formação de um Estado tinham, normalmente, como autoridade educacional anciões e sacerdotes, o que poderia até se misturar com dizeres de cunho religioso. Para todos os efeitos, os mais velhos reproduziam o conhecimento, sendo restritivo e difuso por vários motivos, seja por que realmente havia desconhecimento sobre determinado assunto, haviam os limites que a idade poderia promover, a hierarquização daquela sociedade, ou mesmo o fato deste conhecimento reproduzido estar envolto de uma tradição, sendo assim fazendo com que o conhecimento continuamente permanecesse limitado aquele núcleo social.
Ao olharmos para o Complexo Alfa, percebemos que apesar de seu avanço tecnológico e genético, eles vivem envolto de um processo de conhecimento e aprendizado que se reflete as primeiras sociedades humanas de nosso mundo. De fato, constatar isso é estranho, principalmente por que a instalação é muito avançada e os clones subsistem com certa facilidade e existem muitas armas tecnologicamente sofisticadas no complexo, mas é possível refletirmos que o Computador retratado no cenário de Paranoia nada mais é do que um reprodutor de conhecimento dos humanos de uma geração muito anterior. Estes humanos anteriores podem muito bem ser tratados como os anciãos de sociedades sem formação Estado, afinal eles programaram o Computador repassando tudo o que ocorreu anteriormente e os potenciais terrores subsequentes aos conhecimentos da guerra que viveram, tanto é, que por exemplo, o comunismo é uma das práticas mais perigosas do Complexo Alfa, com sumária execução do clone praticante.
Não intencionalmente, aqueles mesmo programadores do Computador que o concederam tamanha inteligência artificial para poder deliberar e conceder conhecimento, o restringiram efetivamente sobre este conhecimento fornecido. Apesar do grande Computador tomar decisões e virtualmente ser mais inteligente que um ser humano, ele é limitado a um conhecimento protetivo desta sociedade, como se nem sequer soubesse exatamente sobre tudo o que está acontecendo fora do complexo ou mesmo sobre o que ele mesmo guarda em seu banco de dados, por esse motivo que as tecnologias de segurança e subsistência são tão sofisticadas, mas o conhecimento de uso e acesso delas é limitado a uma hierarquia, apesar de eventualmente armas poderosas serem acessíveis para um clone sem a devida instrução sobre ela.
Estes programadores, tal como anciões de uma sociedade sem Estado, buscavam um sentimento de preservação. A preservação da sociedade sobre o mundo pós-guerra, por isso que deliberadamente informações foram restringidas até para o Computador, eles buscavam promover o melhor modelo possível que aquela sociedade artificial poderia oferecer, mesmo que, tecnicamente, sequer os habitantes não fossem mais humanos. Na busca pela sociedade que melhor se adequasse aquela realidade pós-guerra, surge numa perspectiva positivista Durkheimiana um controle hierárquico destas informações, algumas que foram perdidas pelo tempo, ou mantidas em algum banco de dados perdido para o próprio Computador, assim tornando a sociedade tecnicista por um lado, sempre sofisticando a sua tecnologia, mas por outro mantendo os clones num cíclico processo de ignorância.
O clone, por outro lado é tratado como se estivesse num processo de aprendizado constante, durante esse processo, sendo colocado num setor especifico, passa por disciplinas ameaçadoras e otimistas do Computador, algumas envolvem desvio de serviço, que se questionada a função, pode ser considerado uma traição. Seu corpo e sua mente estão sendo condicionados para receber os aprendizados que estão por vir, e por fim, ao realizar sua tarefa, eventualmente receberia mais direitos, ou ao menos é o que o Computador sugere para os candidatos que buscam a elevação hierárquica de suas cores. De fato, o comportamento do Computador é quase patriarcal, como se os clones fossem crianças ou jovens inconsequentes, por isso quando se comunica, existe um rigor misturado com frases acolhedoras.
Vendo algumas gravuras do livro de RPG, é sugerido que a localização da matriz do Computador se encontre ao centro do Complexo Alfa. Apesar de existirem câmeras por todo o complexo, o simbolismo do Computador estar nesta posição centralizada é muito semelhante a estrutura do Panopticon, citado por Foucalt (1987). Foucalt, mostrando alguns exemplos fotográficos e de plantas arquitetônicas, descreve o Panopticon[1] como uma espécie de prisão semelhante a uma gaiola, cúpula, ou qualquer outra estrutura que seu alicerce principal seja uma circunferência onde no seu centro da mesma, encontra-se uma torre ou uma estrutura suspensa, onde fica o vigia, enquanto envolta desta estrutura estão as celas. Os aprisionados na cela têm uma visão limitada por conta da construção de sua cela, já o vigia tem uma visão privilegiada e completa de toda a prisão, sendo capaz de observar qualquer ação que os prisioneiros são capazes de realizar.
Em Paranoia o simbolismo é quase expositivo, como se os autores quisessem nos explicar a crítica sobre a sociedade de vigilância ali construída. É possível fazer muitos paralelos com o Panopticon, não só com a planta da estrutura como também no tipo de relacionamento que pode acabar se desenvolvendo entre os encarcerados, ou no caso do Paranoia, sobre os clones.
É possível ver que na estrutura do Panopticon, existe uma atenção particular para a cela dos encarcerados, apesar de sua frente ser aberta, a visão para o teto, onde normalmente fica o anexo do vigia é limitado, o mesmo se dá para o caso dos encarcerados que estão em andares a baixo, que além de serem incapazes de ver o anexo do vigia, também não são capazes de ver os outros prisioneiros de andares acima, só podendo ver os de seu andar, e os do andar a baixo, portanto os únicos que tem alguma visão privilegiada são os que estão nos andares assim. Vale ressaltar que sempre haverá uma grande distância entre o vigia e os encarcerados, sendo assim, nenhum prisioneiro será capaz de estar no topo vendo o vigia.
Neste ponto podemos ver mais ou menos como é uma instituição que hierarquiza seus membros e seus setores. Membros esses que nunca serão capazes de estar na mesma posição de seus vigias, mentores, mestres ou senhores. O distanciamento é grande e seguro pro vigia, tal como na realidade do Complexo Alfa, que apesar de um clone ainda ser capaz de subir posições em níveis de segurança, ele nunca estará na mesma posição de conhecimento que o grande Computador, nunca será capaz de ter um olhar privilegiado e macro, como o Computador possui.
Em diversas oportunidades os clones só gozam de sua posição quando sentem que são capazes de estar acima dos clones com Níveis de Segurança inferiores, a concessão do conhecimento ainda é relativa, afinal ainda tende a ser incompleto, confuso e as vezes equivocado, tal como os encarcerados do Panopticon, esse distanciamento com o vigia, ou o grande Computador, também se reflete ao tanto de conhecimento que este indivíduo tem acesso.
A distância é longa e segura para quem está na posição de dominância, assim o conhecimento e a informação que os clones e encarcerados adquirem são tão somente sobre eles mesmos, nada além ou afora daquela realidade que eles estão vivendo. O conhecimento então, como falado anteriormente nada mais é que uma continua reprodução de toda uma construção de saberes sobre aquela mesma realidade. O Computador não é totalmente responsável, mas sim seus programadores anteriores que tinham tantos receios quanto desesperos sobre os efeitos da 3º guerra, assim programando o Computador com informações que tão somente serviam para controlar uma população de clones e garantia de sua sobrevivência. Se fugir a esse pensar, será tão perigoso para o sistema quanto para a credibilidade de conhecimento do próprio Computador.
Não percam a última parte deste Artigo na próxima semana!
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