Neste exato momento, feche os olhos (claro, depois de ler isso!).
"Agora, imagine uma tarde de fim de semana ao lado dos amigos, todos vocês querem jogar RPG, mas não tem muitas ideias de aventuras, para personagens complexos e muito menos para lembrar regras tão complicadas.
Daí, se amigo traz aqueles velhos livros de RPG, provavelmente a primeira edição de D&D e mais alguns dados. O livro tem umas páginas amareladas, o uso e a umidade sempre foram cruéis; as imagens tinham traços simples e tudo era preto em branco, alguns desenhos são carregados de vergonha alheia, como o bárbaro de tanguinha e meio fora de forma fazendo uma pose estilo Conan, ou o druida (acho) usando um chapéu feito com peles e galhardas de algum cervo.
Tosco, mas carinhosamente nostálgico. Mesmo pra quem não vivem essa época.
Geramos atributos, consultamos as habilidades de classe, limitamos a um parágrafo de história e nos sentimos poderosos ao desbravar florestas e masmorras. Uma tarde boa, ainda citávamos trechos da aventura durante a semana...
Pena que esses tempos não voltam mais..."
Caindo pra realidade
RPGs ficaram mais complexos, as histórias ficaram mais profundas e complexas, cada edição parece que as coisas aumentam ainda mais, mais mecânicas surgem, magias que antes conhecíamos de um jeito, agora parecem de outro. Muita informação para nossas cabeças!
Mas acalmem-se, não sou contra isso, gosto muito dessa transformacão na verdade, e toda essa complexidade e balaceamento é fruto da sofisticação, modernidade e, obviamente, esmero que os autores tem por suas obras para trazerem a experiência mais refinada possivel para o público RPGista. Ao falarmos isso, também consideramos a possibilidade de que algum elemento das edições mais modernas ficou mais simples e acessível para os jogadores, como o caso de D&D 5e comparado com sua terceira edição, que apesar de contrariar a natureza deste artigo, amo-a mais do que deveria.
Apesar de tudo, parece que tudo está muito diferente do que foi no passado. Não precisamos ir diretamente para as regras para termos essa resposta, as próprias gravuras nos mostram essa diferença. Não nego que nestes livros de RPG mais modernos existem gravuras de cair o queixo e que querendo ou não, o apelo visual pode influenciar muito nas vendas de um livro, mesmo RPG fundamentalmente sendo um jogo que nós usemos a imaginação. Parece que a ligação com o passado vai aos poucos se desprendendo. Pode parecer uma crise de um boomer prestes a nascer, mas aquelas gravuras engraçadas tem muita história pra contar e talvez não fosse tão ruim se certas coisas se parecessem um pouco com o passado. Claro, sem a galhofagem não intencional.
Mas não temam meus amigos calvos e grisalhos! Vocês não precisam mais falar que “tudo era mato”, ou que as “coisas eram melhores” no seu tempo como uma desculpa pra disfarçar que você ta muito sem tempo e só quer uma partida descompromissada de RPG. Eu vos apresento o movimento OSR!
Normalmente com tão poucas páginas e tão brancas quanto nossos cabelos, o Old School Revival/Renaissance (OSR) é um movimento RPGista que sempre buscou manter-se firmemente semelhante aos antigos RPGs medievais, com poucas regras e bastante modularidade na arbitrariedade do mestre. Boa parte dos OSR são tratados como retro-clones de D&D, o que faz sentido. Afinal este movimento só foi capaz de ver a luz graças a Open Game License cedida pela Wizards of the Coast. Mas entendam, todos os OSRs são tratados como retro-clones, seja por estética ou por regras, mas nem todo os retro-clones são OSRs. Tanto é que durante esse artigo vou mostrar alguns exemplos.
A anatomia de um OSR
Em sua natureza, OSRs são muito enxutos, alguns se assemelham a terceira edição de D&D com o uso de modificadores nos atributos não muito altos, enquanto que outros refletem a regras mais antigas, o qual os jogadores tem que rolar um valor igual ou menor que seus atributos. Em ambos os casos a evolução tende a ser bem simplificada também, com rolagens que devem exceder o atributo para indicar que ele ficou mais forte, uma rolagem para ver o quanto o jogador vai receber em pontos de vida, e em casos de jogadores usuários de magia, alguma rolagem pra ver se irá ganhar mais uma nova magia ou mesmo o direito de receber gratuitamente. Normalmente os jogadores não recebem novos talentos ou habilidades, ficando a cargo do mestre conceder uma nova habilidade como conquista na aventura. Muito simples, muito rápido.
E os inimigos? Esqueça toda aquela ideia do Beholder ou Lich com uma página inteira de habilidades e magias. Sim, inimigos podem ser poderosos, e em geral são, mas é comum que eles tenham uma única habilidade que fornece vantagens contra os jogadores. Geralmente é alguma habilidade interfere mais no espaço o qual eles estão do que alguma superioridade pessoal, como é o caso de boa parte dos talentos dos personagens dos jogadores.
OSRs se voltam muito mais para a experiência de emular uma aventura clássica de RPG do que dar recompensas aos jogadores no final destas aventuras, elas até existem, mas não é o fundamental. Por mais simples que sejam estes sistemas, eles tendem a ser mais desafiadores para os jogadores, portanto, apesar dos personagens terem poucos talentos ou poucas magias, o mestre deve privilegiar a criatividade dos jogadores. Os personagens dos jogadores raramente se sentirão muito fortes ou diferentes, normalmente o desenvolvimento narrativo e da personalidade de seus personagens é o que importa nos OSRs.
Como anda o OSR pelo mundo?
Com quase 20 anos de história, o OSR ainda é meio desconhecido, mas está enraizado vários sistemas não tão populares quanto D&D, Vampiro ou Shadowrun, seja pela sua proposta, regras ou tão somente as regras. O mais interessante é que mesmo o OSR tendo uma proposta meio conservadora como memória do passado, foi o que mais deu margem para proporcionar coisas diferentes do que é mais recorrente no mercado. Os mais populares no cenário internacional são Dungeon Crawl Classic, Lamentations of Flame Princess e Black Hack.
O Brasil também tem seu protagonismo no OSR, com bastante fidelidade com o movimento, diga-se de passagem. Indie Hack, Mighty Blade, Foices & Feitiços e Espadas Afiadas e Feitiços Sinistros estão entre os OSRs que circulam pela cenário brasileiro. Vale ressaltar o acolhimento e acessibilidade dos seus autores ao fornecerem estes sistemas a preços simbólicos, modalidades de compras “pague o quanto quiser”, ou mesmo são de graça, como o caso de Mighty Blade.
Qual o futuro do OSR?
A experimentação, eu diria. Como falado antes, muitos elementos do OSR se fazem presente nos jogos atuais. Isso se dá pela própria intenção vanguardista da simplicidade. Trazer um sistema simples e deixar a complexidade exclusivamente para a forma como os jogadores vão construir seus personagens. Essa proposta também abriu margem para os sistemas de 1 folha, com a igual intenção da simplicidade, mas com a exigência de ainda menos preparo e mais acordos entre os jogadores e o mestre.
Muitos OSRs seguem a receita que citei no início deste artigo, ainda assim há muita margem pra experimentação. Nem todo sistema OSR será essencialmente um reflexo do D&D dos anos 70, até por que ninguém vai querer comprar o mesmo livro sempre. Por serem trabalhos independentes, muitas particularidades vão existir. As vezes só a estética tende a ser emprestada para o RPG, como o caso de Forbbiden Lands que usa o sistema Mutant Engine. Da mesma forma como também existem jogos que o visual pode ser completamente moderno e possuir as mecânicas clássicas, como o caso do já citado Lamentations ou o caso do OSR que me levou a escrever este artigo, o Mork Borg, que possui uma arte maravilhosamente revoltante e carrega o pretencioso lema “Leve nas regras, pesado em todo o resto”.
Na minha busca por sistemas que apresentem o RPG para o público novato no hobby, os OSRs se mostraram bem valiosos. A facilidade de entendimento de regras não força de imediato a compreensão de um jogador que até então não conhece nada do hobby. Por depender muito da arbitrariedade do mestre, é bem mais fácil definir o tom da aventura. Por fim, esta simplicidade implica em partidas mais rápidas para os jogadores participarem. Devemos considerar que apesar do jogador de RPG gostar do hobby, nem sempre ele terá tempo para se dedicar a uma longa campanha, ou mesmo ele se divida muito mais nos seus gostos, eventualmente deixando o RPG em segundo plano, fazendo assim o OSR também definir o formato de como o grupo pretende jogar.
OSRs são incriveis. Resgatam a memória do passado dos antigos RPGs mas sem se perder no mero saudosismo, as regras são acessíveis para todos e ainda tem a possibilidade da inovação e foi fundamental para a formação do mercado alternativo de RPGs que temos atualmente. Se existe alguma dúvida sobre o futuro do movimento, posso garantir que vai durar por muitíssimo tempo!
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