Resenha – A Flecha de Fogo

Quando A Flecha de Fogo foi lançada na CCXP 2018, eu sabia que precisava ler esse livro. Em parte porque o autor Leonel Caldela já tinha me conquistado com seu trabalho na Trilogia da Tormenta e em O Código Élfico, com textos de excelente qualidade e dinâmica, mesmo sendo de gêneros tão distintos (o Código está mais pra invasão alienígena do que fantasia medieval, apesar do título).

Mas o real motivo do meu entusiasmo foi devido o título da obra, referenciando a profecia sobre a ascensão e queda do "vilão" (com aspas mesmo) Thwor Ironfist. O nome indicava que esse livro causaria mudanças no status do cenário de Tormenta, cuja última grande mudança tinha sido a expansão do Império de Tauron.

Depois de mais de um ano buscando nas livrarias da região, acabei optando por comprar a versão digital pra poder finalmente ler a história, bem a tempo de evitar os spoilers que teria pego na leitura da Gazeta do Reinado (espécie de jornal de Arton, publicado na Dragão Brasil).

Para quem gosta de se manter atualizado com os eventos de Arton, o livro é leitura essencial a ser feita antes de pegar seu Tormenta20. Mas se você não é daqueles que aprecia ler romance, ou não vai conseguir ler o livro a tempo de começar a jogar a nova versão do RPG, no final da resenha vou colocar uma sessão de spoilers.

Por enquanto, vamos com as opiniões.

Corben

Logo de cara conhecemos o protagonista Corben, que é também o narrador da história. Vemos rapidamente sua infância no interior de Tyrondir, sob a ameaça constante da Aliança Negra, e rapidamente pulamos para o presente, como um astrônomo e clérigo de Thyatis.

Tenho que dizer que odiei o personagem logo de cara, e ficava imaginando se teria que aguentar ele o livro inteiro. É claro que ele sendo o narrador, era de se esperar que ficasse vivo até o final... Como clérigo, o protagonista estava muito mais preocupado em atazanar jovens abaixo dele na hierarquia da igreja ou em arranjar confusão com seus irmãos de fé. Mas após ser capturado e escravizado pelos goblinóides, Corben começa a amadurecer e questionar o que sabe (ou o que os outros acham que sabem), além de passar a entender seus captores e ver o lado do inimigo.

Goblinoides

Aliás, a visão de mundo do ponto de vista dos goblinóides é o grande destaque do livro. Somos apresentados a uma cultura totalmente diferente, de povos que tiveram de se unir sob a bandeira da guerra e da morte para conseguir resgatar a liberdade que lhes foi tirada pelos invasores élficos, vindos pelo mar.

Depois de nos mostrar que Tormenta não era apenas um mundo de fantasia e aventura estilo anime na Trilogia da Tormenta, Leonel Caldela nos apresenta uma Aliança Negra totalmente diferente do que assombrava o cenário nos quase vinte anos entre a publicação da Dragão Brasil nº 50 e do romance.

Descobrimos que os goblins de Arton temem por suas vidas, caçados por humanos muito maiores que eles que os matam e destroem suas vilas, gerando órfãos e andarilhos. Aqueles que conseguem fugir para a segurança de Lamnor se deparam com o potencial de sua própria raça, capaz de inventar grandes coisas e estabelecer grandes cidades, sem ter as limitações psicológicas impostas por uma sociedade que os trata como lixo.

Ao mesmo tempo que Corben aprende sobre a cultura de Lamnor, vamos sendo conquistados pelas ideias desse povo, que não quer nada além de um lugar seguro para as futuras gerações, sem aventureiros que os ameacem apenas por existirem.

É impossível ver um goblin da mesma forma depois de ler a Flecha de Fogo.

Em tempos de luta por direitos e igualdade, sejam dos negros, das mulheres, LGBTQ+ ou imigrantes, essa abordagem de choques de culturas fantásticas mostra muito bem como o ser humano é capaz de odiar outros apenas porque são diferentes, e como muitas vezes nós somos incapazes de ver a dor e injustiça que o nosso lado comete, de tão enraizada que a segregação está em nossas culturas.

As Lendas de Arton e Lamnor

Como o livro se passa quase inteiramente em Lamnor e a única nação do Reinado a ser visitada é Tyrondir, temos poucos personagens icônicos do cenário aparecendo na história.

Lorde Niebeling é o primeiro a aparecer, e sua participação na história é quase que irrelevante, visto que não causa nenhuma influência na trama além das suas duas aparições.

Gaardalok, o sumo-sacerdote de Ragnar, está lá, com uma presença que incomoda e intimida a todos, pois a Morte não pode ser desafiada. Entretanto, observamos ao longo do livro que a Aliança Negra respeita o culto ao Deus da Morte dos Goblinoides muito mais pelo medo do que pela fé.

Thyatis aparece diversas vezes, e continua interessante observar suas aparições, como em sua conversa com Nimb em O Inimigo do Mundo. Ver os diálogos do Deus da Ressurreição e Profecia com Corben faz pensar se algo semelhante acontecia com Gregor Vahn, o paladino dos livros antigos. E também desperta o dilema sobre um mundo onde sabemos que o destino existe: afinal, Thyatis prevê o futuro porque é capaz de enxerga-lo ou o futuro acontece porque Thyatis assim o profetiza?

Thwor Ironfist

Mas nenhum “NPC clássico” se destaca tanto quanto Thwor Ironfist. De certa forma, ele lembra o Thanos de Vingadores: Guerra Infinita (e isso é um grande feito). É um vilão com carisma, capaz de intimidar com sua simples presença, mas também conquistar você pela calma e foco no seu objetivo benigno de salvar as vidas do seu povo. Seu povo o adora como imperador (e não como general) e salvador.

E a Flecha de Fogo? Bem... Depois de quase duas décadas, muitas mesas de RPG já devem ter testemunhado seus grupos de aventureiros procurando ou encontrando o artefato místico que daria fim ao campeão de Ragnar. Mas na forma como a história nos é contada, quando descobrimos onde está a Flecha, a preocupação acaba sendo em como Thwor e os goblinoides podem sobreviver ao ataque final.

E falando em final... Vamos aos spoilers, para entendermos o impacto desse livro na cronologia oficial de Tormenta.

SPOILER

Depois de ser capturado, Corben recebe de Thwor a missão de descobrir quem ou o quê é a Flecha de Fogo da profecia. Sendo um astrônomo, ele estuda as estrelas em busca de sinais e revelações, e acaba se deparando com um cometa vindo em direção a Arton. A "flecha" havia sido disparada ("quem disparou a flecha?") na forma de uma grande rocha em chamas cruzando os céus, incapaz de ser parada ou desviada de seu alvo.

E depois que a descoberta é feita, percebe-se que o alvo da Flecha não é apenas Thwor, mas todo o império goblinoide do sul, que seria completamente destruído pelo impacto. Inicia-se então uma corrida para avançar para Arton, preferencialmente de forma pacífica através de negociações (frustradas) com Tyrondir, visando salvar pelo menos uma parte da cultura duyshidakk (o povo, como se intitulam aqueles que seguem a filosofia de Thwor).

Revela-se também que Ragnar era na verdade o Deus da Morte dos Goblinoides, numa armadilha linguística: ele não era a divindade que representava a morte entre os bugbears, mas sim o deus que representava a morte do povo goblinoide, sendo ele próprio o responsável por criar a profecia em torno do qual o livro se desenrola e através da qual a “Flecha” é disparada.

No final, Thwor, que não cultuava Ragnar, sai em combate com o avatar da divindade e morre quando o cometa finalmente cai sobre Tyrondir. Seu espírito, entretanto, segue lutando nos reinos dos deuses, e após alguns dias, finalmente vence o combate, matando Leen (a face original de Ragnar), o Deus da Morte, e ascendendo no Panteão como o Deus Maior dos Goblinoides.

Corben, por fim, deixa de ser um clérigo de Thyatis para se tornar o sumo-sacerdote de Thwor.

Considerações finais

Há muito mais coisa para se falar sobre o livro, como a importância do idioma dos goblins para a história, a relação de amizade de Corben com Maryx (sua dona hobgoblin), todas a beleza e estranheza da cultura duyshidakk, o Akzath, o paradeiro da princesa élfica Tanya de Lenórienn... Mas para não deixar o texto muito longo, essas outras joias vão ficar para quem se dedicar à leitura do livro.

Tal qual O Terceiro Deus, A Flecha de Fogo vem para mexer na organização do Panteão, resolvendo um problema antigo do cenário, mas nem de longe deixando o cenário mais tranquilo. O livro "irmão", A Deusa no Labirinto, e a campanha da Guilda do Macaco (com os autores originais do cenário), terminam de preparar o terreno para Tormenta20, com outras mudanças no Panteão e a guerra mundial que praticamente deu fim ao Reinado.

A espera pra ler mais essa obra de Leonel Caldela com certeza valeu a pena e agora é partir para A Deusa no Labirinto pra ver Tapista pegar fogo!

1 comentário.

  1. Mike Wevanne
    Eu acho interessante obras que trazem a visão dos goblinóides para o holofote. Aliás, eu costumo curtir quando uma ambientação explora culturalmente os elementos que estão presentes em seu universo fictício. Raças deixam de ser algo imutável e ganham uma camada interessante em nossa brincarmos de imaginar aventuras e jogar dados! Quando penso nisso eu lembro de Warcraft (será que foi onde começou a abordagem de mostrar ao público o ponto de vista dos "monstros"?) e um romance já antigo, "Orcs: Guardiões do Relâmpago", que prometia essa premissa e me deixou muito curioso para ler na época, mas as críticas com que esbarrei acabaram me afastando.

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