Então estávamos presos em uma clareira: uma runa gravada em uma pedra enterrada no centro do espaço aberto era a única coisa que impedia aquela coisa de se aproximar.
Fayla, a druida que nos socorreu quando nosso transporte caiu dos céus, explicava que sua bisavó havia retornado a alguns meses, e trouxe com ela um ar de podridão para a floresta que a família protegia a gerações. Um a um ela absorveu os membros da família, expandindo seu corpo que agora era um amontoado de peitos, braços e pernas em uma verdadeira centopeia humana.
Podíamos ouvir os múltiplos passos cercando a clareira e as infinitas unhas raspando os troncos das árvores.
– Quanto tempo levaríamos para conseguir atravessar a floresta e chegar na fronteira do Reino dos Crânios?
– Comigo guiando vocês e a minha bisavó nos perseguindo, três dias. Escondermo-nos dela atrasaria bastante a viagem.
Já havíamos perdido uma semana voando na engenhoca com hélices espiraladas, agora mais isso? Fora o tempo para atravessar o reino até a presença da Madame Sombria, negociar uma aliança contra Ashrakal e retornar com a resposta para o Ducado do Sul.
Pelo menos a viagem dentro do Reino dos Crânios prometia ser rápida, ainda que não segura: Fayla contava que décadas atrás a bisavó viajara para o reino mórbido para aprender sobre a ameaça das pessoas “civilizadas” e trouxera vários livros. Com sorte haveria mapas e anotações sobre o tipo de coisa que encontraríamos no caminho até a capital.
De repente a druida apontou para o centro da clareira: enquanto ponderávamos, um zumbi se aproximara e cavava freneticamente. Com certeza estava tentando alcançar a pedra com a runa. Se pudesse removê-la, a proteção acabaria e a bruxa poderia pegar a última descendente que faltava absorver.
Fayla tentou um ataque primeiro, mas em um descuido acabou sendo mordida. Num reflexo, saquei meu chicote e o agitei na direção do morto-vivo. A arma enrolou-se no corpo da criatura e dei um puxão para tirá-la de cima da druida. Com um salto, Solarius, nosso orc paladino, lançou-se sobre nosso inimigo e lhe cortou a cabeça fora.
O rosto da bruxa revelou-se entre as árvores, rindo.
– É uma questão de tempo, minha filha, até que eu possa entrar aí e pegar você. Não vai poder se esconder pra sempre aqui...
E ela puxou dos trapos que cobriam um dos seus peitos uma concha, levando-a em direção à boca. Eu pude notar os pulmões se enchendo de ar para soprar. Ela iria convocar mais mortos-vivos para desenterrar a runa de proteção.
Aquilo seria o nosso fim, então em um ato de desespero, saquei a minha pistola e disparei a última bala que eu poderia ver em dias viagem. Aquela coisa asquerosa guinchou ao sentir os dedos se fecharem onde antes estava a concha, agora despedaçada pelo meu tiro.
– Se acha que isso vai impedir, você não perde por esperar humano nojento!
E com esse insulto ela desapareceu entre as árvores.
Tive que controlar minha respiração e meus músculos enquanto guardava a arma no coldre, para não transparecer o meu nervosismo.
– Minha querida amiga da floresta, acho que irritamos sua parente. É melhor irmos o quanto antes para antiga casa da sua família, pegar o máximo de informação possível. Mas eu creio que vamos ter que lidar com ela antes que o sol se ponha. Precisamos de um plano...
Enquanto Solarius se certificava de que a mordida do zumbi não iria infeccionar e transformar Fayla em mais um inimigo, montamos uma estratégia.
Quando encontrássemos Virseck, Fayla usaria suas magias da natureza primeiro para imobilizá-la com vinhas nascendo do chão. Sinusite, nossa companheira goblin, iria fundir o corpo da bruxa com o chão seco da floresta, garantindo que ela não pudesse escapar. E Solarius invocaria as bênçãos da sua deusa do verão para lançar suas bolas de fogo na criatura. Se isso não fosse o suficiente, ela ainda estaria presa ao chão para que uma lâmina no pescoço resolvesse o problema.
Com o plano em mente, abandonamos a segurança da clareira e fomos em direção à antiga casa da família de druidas. Fora da área protegida o ar era pesado e a luz tímida. Caminhamos por uma hora até chegar em outra clareira onde ficava a casa abandonada.
Onde antes deveria haver um jardim ou horta, agora só havia um chão lamacento, quase um pântano, com garras que surgiam aqui e ali do meio da água pútrida. Fayla e Sinusite foram na frente, saindo do meio das árvores e se expondo.
Virseck esperava pela bisneta na casa.
– Ora, ora, veja quem finalmente veio visitar a família! Venha aqui! Você não quer sentir os chutes do seu sobrinho?
E movendo rapidamente o corpo, a bruxa enrolou suas várias barrigas em volta da druida, deixando uma barriga com aparência de grávida bem perto do rosto dela. Fayla não hesitou, e seu corpo começou a se transformar em uma fera, que conseguiu se livrar da centopeia humana.
Com um gesto e uma prece, vinhas emergiram da lama e começaram a se enroscar pelas pernas e braços do corpo alongado.
O plano estava em ação.
E parou ali.
Sinusite olhou para o chão, mole. Sua magia seria inútil para prender a bruxa ali.
Solarius sacou a arma e partiu para o combate. Se usasse as chamas agora, suas companheiras seriam queimadas junto devido a proximidade. E antes que ele alcançasse a inimiga, os rosnados encheram o ar, mortos-vivos começaram a sair do meio das árvores, vindo por todos os lados.
Eu não tinha mais balas e o chicote seria inútil em um combate cercado por inimigos. Minha única opção era soprar a ocarina e usar a magia da minha melodia para inspirar os movimentos dos meus companheiros, dando coragem aos seus braços diante das dificuldades.
Virseck não ligou para nada além da sua descendente. Com um urro de raiva, rasgou as vinhas e deu um golpe de cem braços em Fayla, que foi arremessada para a porta da casa.
Sinusite aproveitou a euforia da inimiga e mudou a estratégia: com uma sequência de gestos arcanos, lançou um feixe de magia que envolveu o corpo serpentino e o fez desaparecer, fundindo-o em uma árvore de onde ela não poderia nos ameaçar enquanto estivesse presa.
– Para a casa! Vamos nos reagrupar!
Lembrei-me de Andilla. Eu não podia deixar que mais alguém morresse em uma missão minha. Corri por entre os mortos-vivos, peguei Fayla nos braços e joguei-me porta adentro, sendo seguido por Sinusite. Solarius foi o último a entrar, e conseguiu empurrar uma mesa para tentar segurar a porta impedindo a invasão.
Comecei a tocar uma melodia de repouso, que gerou uma luz que escapava pelos orifícios da ocarina e envolvia o corpo da druida, apagando alguns hematomas e cortes do golpe que ela recebera.
Sinusite começou a andar pela casa, atrás de algo que pudesse ajudar. Uma única grande cama, onde provavelmente toda a família dormia junto, um porão, ferramentas, uma mesa e uma estante cheia de ervas, sementes e chifres, insumos para fabricar poções e venenos.
E em um pequeno altar ao lado de uma estante cheia de livros e pergaminhos, uma joia negra. Fayla acordou com as vozes que saíam do objeto. Vozes a chamavam, pedindo para serem libertadas.
– Mãe...
Ela se levantou, pegou um grande martelo e golpeou a joia, assustando a goblin que estava fascinada com os rostos que pareciam nadar na negritude do objeto. Com uma onda de choque, Fayla foi arremessada para trás, a testa sangrando. E uma gosma preta escorrendo por uma rachadura onde a pancada tinha acertado.
– Essa coisa... está cheia de energia necromântica, disse Sinusite.
– Não toquem na pedra!, gritou Virseck em meio às árvores, seguido de um berro de dor.
Agora eu vejo que foi ali que tudo deu errado. Meu reflexo foi imaginar que aquela coisa havia corrompido Virseck e a floresta, e se eu pudesse destruir aquilo, tudo voltaria ao normal.
Peguei uma foice e tentei arranhar a joia, ao que Fayla reagiu berrando com um corte que surgia atravessando seu rosto.
– Para com isso, Solomon! Elas duas estão ligadas à pedra! Você vai matar a Fayla!
Sinusite pegou algumas ervas e tentou aplicar elas nos ferimentos da druida.
– Isso, Sinusite! Virseck é forte demais pra vencermos! Se você conseguir estabilizar a Fayla enquanto eu destruo a pedra, poderemos matar a bruxa e salvar a vida dela!
Um barulho quase que como um trovão se fez ouvir na floresta. Virseck estava furiosa e conseguira partir ao meio a árvore em que estava presa e agora corria para a casa derrubando tudo no caminho.
– Olhem aquilo!
Solomon apontou para fora da casa, enquanto cortava os braços de zumbis que tentavam destruir sua barricada.
Quando Virseck apareceu na frente da casa, um alce surgiu do meio das árvores e golpeou a bruxa, rasgando a pele dela e espirrando sangue pelas janelas. A floresta lutava para derrubar sua opressora.
Mais um golpe de foice, mais um jorro de sangue pelas bochechas da druida.
– Me desculpe, Fayla, mas você tem que aguentar!
Virseck apanhou o alce com seus braços e o arremesso contra os mortos-vivos. Carne fresca para o bando, que se afastou da barricada.
Antes que eu pudesse erguer a foice novamente, o teto balançou e por um buraco aquele amontoado de corpos absorvidos pela bruxa começou a descer, como uma serpente.
– Eu disse pra ficar longe disso, seu verme!
E os braços dela me arremessaram contra a estante. Senti as costelas e a nuca baterem nas prateleiras de madeira maciça. Senti meu corpo cair pesado no chão, os pulmões adormecidos com a pancada sem me deixar respirar po’r um instante. E por um fim, um livro caindo na minha cabeça e se abrindo na minha frente.
Ali, desenhado nas páginas amareladas, estava a joia que eu tentava destruir. Negra, com rostos agonizantes flutuando pelo lado de dentro. Virseck dava passos largos em direção à bisneta caída inconsciente. Sinusite era a única coisa entre elas.
“... O sangue imaculado irá romper o laço...”
Vi o sangue que escorria pelo rosto da druida. Era isso. Bastava passar aquele sangue na joia e o vínculo dela seria quebrado, e apenas a criatura ainda sofreria com os golpes. Tentei me levantar, esticar o braço para alcançar a gema.
E as chamas espalharam-se desordenadas. Solarius, livre da preocupação com os mortos-vivos que agora devoravam o alce, entrou na oficina e tentou disparar sua magia de fogo contra Virseck. Atrapalhou-se. Uma bola de fogo caiu em cheio na joia, que começou a queimar e estalar nas labaredas mágicas.
Fayla e Virseck começaram a gritar de dor, levando às mãos aos peitos. A druida começou a pegar fogo, seu coração em chamas. Virseck jorrava um sangre preto que derramava de cada peito esquerdo. Ambas caíram agonizando e morreram ao som da joia se partindo.
Fayla estava morta. E a floresta estava livre da maldade da bruxa. Novamente, eu falhei em salvar alguém.
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